Desde antes do início da guerra da Ucrânia, o jornalista brasileiro Yan Boechat já estava no leste europeu preparado para cobrir a possível invasão russa. Especialista em conflitos internacionais, o jornalista usou do faro jornalístico, de quem passou mais de 20 anos cobrindo o Oriente Médio, principalmente Afeganistão, Iraque, Síria e Gaza, e depois voltou à região para cobrir o conflito após as Olimpíadas de Inverno de Beijing. “Eu sabia que depois das olimpíadas alguma coisa iria acontecer”, conta ele.
Yan Boechat já publicou reportagens em jornais e revistas como Gazeta Mercantil, Valor Econômico, Istoé, O Globo, Deutsche Welle, Veja, Folha de S. Paulo. Atualmente colabora com o Grupo Bandeirantes e Voice of America. O jornalista já foi premiado pelo Prêmio Vladimir Herzog de Fotografia por seu ensaio no município de Manaus, onde registrou as vítimas da pandemia que morreram em seus domicílios, e neste ano foi escolhido como Profissional do Ano pela Arfoc (Associação Brasileira dos Repórteres Fotográficos e Cinematográficos).
Nesta entrevista ao Portal Negócios da Comunicação, o jornalista explica o ímpeto de ir a Ucrânia, como é o cotidiano de um repórter cobrindo a guerra do front, as dificuldades de ser um jornalista freelancer, as perspectivas para o futuro deste conflito e do jornalismo de guerra.
Você tem uma vasta experiência em cobrir conflitos. Já esteve no Afeganistão, Iraque e outras regiões de conflito. Como surgiu o interesse por essa área do jornalismo?
Era um sonho desde o início, eu sempre gostei muito de história. A história é definida pelas guerras, os grandes movimentos de importância no mundo, os grandes momentos definidores do mundo são determinados pela guerra. As guerras econômicas, sociopolíticas, geopolíticas têm uma influência muito grande. Eu tinha vontade de ver a história acontecer, e tem um pouco do lado romântico, viver o jornalismo de guerra, as aventuras. Foi isso que me motivou bastante. Eu comecei no momento em que eu tinha tirado um momento sabático, juntei uma grana, e quando os Estados Unidos invadiram o Afeganistão, eu fui para lá. Essa foi minha primeira experiência cobrindo conflitos. Foi uma experiência muito rica, naquele momento, e à partir disso continuo fazendo.
E como surgiu a vontade de cobrir especificamente a guerra da Ucrânia?
Eu acompanho a Ucrânia desde 2014, quanto aconteceu um evento que eles chamam de Revolução de Maidan. Em 2015, foi a primeira vez que eu fui para lá. Fui para Donetsk, voltei em 2016 e 2018. Quando começou toda essa crise atual, estava um pouco claro que iria acontecer alguma coisa. Eu decidi ir para a Ucrânia um pouco antes das Olimpíadas de Beijing. Estava claro, que se o Putin fosse fazer alguma coisa iria ser depois do fim das Olimpíadas na China. Eu fui para lá dia 14, dez dias antes da invasão Russa. Teve o lance de escolher o time certo para não errar, poderia acontecer a invasão ou poderia não acontecer nada. Eu dei certo desta vez e acertei o time.
Onde estava quando começou a invasão, depois de vários alarmes falsos?
Eu estava em Slavyanka perto de Donbass, quando começou a invasão. Naquele momento estava difícil chegar até a Ucrânia, algumas companhias já estavam cancelando os voos. Cheguei no último ou penúltimo dia antes de fechar o aeroporto e as companhias aéreas cancelarem todos os voos.
Eu me lembro que na noite anterior já circulava a informação que a invasão iria acontecer naquela madrugada. Eu dormi de colete, passaporte no bolso, dinheiro para o caso de acontecer alguma coisa e poder sair correndo. Eu acordei 5 horas da manhã com o som das bombas caindo em volta. Eu estava com alguns colegas jornalistas e decidimos sair porque as tropas russas poderiam chegar. Depois fomos, de carro, para Kharkiv e a cidade estava sendo bombardeada. Depois fui para Kiev, esperar o avanço das tropas russas, o que acabou não acontecendo.
Como era atuar no front; o acesso era difícil?
Eu fui para o front algumas vezes, em Kiev, e a frente de batalha ficava a 20 km do centro. Nós jornalistas conseguimos ir até lá acompanhar dentro da cidade, que estava sendo atacada. Mas, depois que morreu um jornalista, eles limitaram o acesso. O front é assim, eles abrem e fecham. Agora estava aberto, mas em outras cidades estava fechado. Depende também das relações que você tem com os militares.
Quais as dificuldades durante os primeiros dias?
Nos primeiros dias tinha um front bem estabelecido. Acordava e ia para Irpin [província de Kiev] e Bucha. Ao mesmo tempo, ficava ligado nos grupos de colegas para saber o que aconteceu. Por exemplo, se um míssil balístico atingiu uma cidade, então íamos para lá. À noite, tinha o toque de recolher, precisa estar de volta antes de escurecer ou, se não respeitasse o toque, encontrava algum lugar para dormir, uma base ou uma igreja. Nos primeiros dias a guerra estava muito em cima de Kiev. Neste momento está em Donbass, então, tem que ir para lá, achar uma cidade e determinar onde vai fazer sua base e o que vai fazer nos dias em que estiver lá. Requer um pouco de planejamento para a cobertura. Como ir onde está acontecendo as batalhas, ou ter acesso a um oficial que me leve a uma posição de artilharia escondida, ou ir para trincheiras. Está muito diferente do início, onde tudo era notícia.
Sentiu medo enquanto estava trabalhando?
Medo eu sinto o tempo todo. Quanto mais perto do front, você sente menos medo, mas quanto mais longe sente mais medo. Quando chega bem próximo, o medo reduz por alguma razão que não sei qual é. Eu fico super tenso o tempo inteiro. Em uma guerra como essa, que é uma guerra de muita artilharia, tem muito a coisa da inevitabilidade, não tem muito o que fazer contra um míssil que cai e não tem como se proteger. Existe uma aleatoriedade nesse tipo de conflito que é assustadora. Quando se está usando artilharia tradicional, só ouvimos a explosão, não há muito tempo para fazer alguma coisa, ficamos mais próximos das paredes. Os mísseis de cruzeiros conseguimos saber que eles estão vindo em nossa direção, isso leva 20 minutos e tocam as sirenes avisando para ir para o abrigo. Os mísseis hipersônicos sabemos quais os aviões que vão soltar. Eles decolaram, mas nunca sabemos quando vão ser disparados, não tem tempo suficiente para se proteger. O mais arriscado é no front, dentro da artilharia.
Na Ucrânia, foi relatado por agências de notícias e jornais, que havia a formação de milícias, devido à distribuição de armas de grande porte pelo governo. Eles intimidavam jornalistas e tinham suas próprias regras, como foi trabalhar nesta situação?
No primeiro momento de guerra foi distribuído armas para a população e foram formadas pequenas milícias, que operaram de formas independentes. Era um pouco perigoso porque tinha figuras sem experiência militar, que passavam por momentos de tensão. Quando eu chegava com a credencial de imprensa, esses grupos não sabiam o que era uma credencial, suspeitavam se era um espião. Hoje, está muito mais profissional, tem uma cadeia de comando mais estruturada, todos fazem parte do exército. Um cara que está comandando um pelotão em uma cidadezinha, tem que se reportar ao comandante. A cadeia de comando está bem estabelecida, tem mais profissionalismo na relação. Não é mais um bando de gente com um AK-47 na mão.
Esse pessoal foi agressivo no primeiro momento?
No primeiro momento eles foram bastante agressivos, mas foi um momento de bastante tensão, ninguém sabia de nada. Bateram na minha câmera, tentaram quebrá-la. Hoje, eles tem atuado de forma bastante profissional. Mas é guerra, então, tem censura, tem coisas que não pode mostrar, não é uma situação de plena liberdade.
A imprensa brasileira praticamente não mandou correspondentes para a Ucrânia durante o conflito. Foram poucos os jornalistas brasileiros que estiveram lá. Os meios ficaram dependentes de agências de notícias internacionais e do governo tanto da Rússia como da Ucrânia. A que se deve isso?
Tem dois motivos: o Brasil não tem tradição em fazer cobertura internacional, porque é um país periférico. O importante para o Brasil é cobrir e estar presente nas metrópoles, pensando do ponto de vista colonial. O que a imprensa faz é colocar um repórter em Nova York, em Londres, talvez um em Paris e com raríssimas exceções, em Tóquio. E esses caras por estar em metrópoles acabam recebendo a chancela de reportar o mundo, mas eles fazem o que uma pessoa de Bauru poderia fazer, por que o acesso à informação é o mesmo hoje. Ontem vi uma repórter fazendo uma matéria sobre Israel, de Nova York. Não faria diferença se tivesse feito aqui do Brasil, da forma que ela fez. Mas o fato dela estar em Nova York dá a chancela ao público de que por ela está em Nova York, e tem mais acesso à informação ou está mais próxima daquela realidade. Essa é uma tradição da imprensa brasileira. O outro problema é a grana. A imprensa brasileira passa por uma crise econômica há muito tempo, e ela entendeu que opinião pode substituir reportagem, temos gente fazendo comentários, de cerca de qualquer coisa ou fazendo uma análise, e é muito mais barato manter alguém parado em Londres, Paris ou Nova York, do que ir aos locais onde as coisas estão acontecendo, porque é uma cobertura cara. É isso, uma mistura de desinteresse, com falta de grana e tradição. Típico de um país periférico.
Como freelancer, você divide os custos com as empresas, ou vai por contra própria?
Tem todas as variações que você possa imaginar. Agora eu fui com a Voice of America e fiquei 15 dias. Depois consegui outro assignment [tarefa] com um jornal belga. A seguir, dividi custos com outros colegas, até conseguir mais um assignment. Foi meio que variando, se não tem assignment, vai com sua grana. Varia muito. Hoje eu tenho tido mais assignment do que loucuras de ir sozinho. Já fui muito com minha grana, para depois ter o retorno. Eu tenho uma parceria com a Band, mas os veículos brasileiros não querem investir muito. Ter um acordo com alguém, talvez, signifique você ficar preso, fazendo matérias que não estou afim de fazer, por uma série de questões. Ser um freelancer te dá mais liberdade de encontrar caminhos para produzir as coisas que você é afim. Porque, invariavelmente, você vai ficando mais velho e vão te colocando como editor, significa ficar na redação e aqui no Brasil quem cobre internacional fica mais na redação, viaja pouco. No meu caso, hoje, pessoalmente, é mais interessante ter uma relação de freela do que uma relação fechada porque eu me sinto capaz, com energia e eu gosto muito.
Compensa ser freelancer ainda?
Está muito difícil. O mercado está muito ruim. Eu agora, nesta viagem que eu fiz, não consegui vender uma matéria no Brasil, ninguém quis comprar, ninguém quis pagar o que eu desejava vender. Tem pouca grana e eu não poderia cobrar um valor muito baixo. Está difícil o mercado.
E quanto as fotos?
Eu comecei vendendo pacote inteiro, texto e foto. O vídeo é uma novidade para mim.
Joel Silveira, primeiro repórter brasileiro que cobriu a 2ª Guerra, na Itália, afirmou que a guerra amadurece. isso acontece?
Não sei se amadurecer. Mas a guerra te deixa mais duro, acho que a guerra me embruteceu, de certa forma, isso não é legal. Pelo lado profissional foi muito bom porque me ajudou a ver o mundo de outra forma. Mas, em geral, o discurso da guerra é maniqueísta, o discurso do bem e do mal é bem relativo. Ela me ajudou nisso, neste sentido. Não só a guerra, mas viver em um mundo muçulmano, talvez tenha sido a coisa que mais me ajudou a entender o mundo de uma forma menos radical, que têm camadas e complexidades. Existe uma frase [de Erasmo de Roterdã, filósofo suíço, século 16], que diz que a guerra só é boa para aqueles que nunca experimentaram, isso é uma verdade.