O jornalista, escritor e professor universitário Eugênio Bucci lançou simultaneamente dois livros que buscam refletir os tempos atuais, onde a desinformação e os ataques à democracia insistem em questionar o estado de direito: “A razão desumana – cultura e informação na era a desinformação inculta (e sedutora)“ (Autêntica Editora) e “Que não se repita – a quase morte da democracia brasileira“ (editora Seja Breve). A razão desumana é um conjunto de ensaios críticos, onde o autor investiga como a cultura contemporânea tem sido moldada por um tipo de lógica desumanizada que substitui o pensamento crítico pela desinformação. Reúne ensaios e material que Bucci apresentou em diferentes palestras e outros publicados em revistas de circulação restrita, sob um novo olhar. E Que não se repita traz artigos publicados pelo jornalista no Estadão durante o governo Bolsonaro, num relato retrospectivo da tentativa de golpe de estado que foi construída aos poucos e à margem da lei. Estamos falando de ações da extrema direita brasileira que não se conforma em ter perdido as últimas eleições e tenta sabotar a democracia e induzir a população a aceitar um golpe de estado e a criticar a lisura das eleições, com narrativas manipuladoras e uso intensivo das redes sociais para propagar fake news.
Para refrescar a memória, vale a pena lembrar o cotidiano vivido pelos brasileiros durante o governo de Jair Bolsonaro. Seria cômico se não fosse desastroso. Da catastrófica condução da saúde pública durante a pandemia, passando pelas agressões ininterruptas à cultura e aos jornalistas e chegando à tentativa de golpe de estado pela qual o mandatário está por responder nos tribunais, nada desse dia-a-dia desgovernado passou incólume neste livro demolidor e imprescindível, para que não se esqueça dos perigos que continuam assolando a democracia brasileira.
“Esses livros são registros, em planos diferentes, um com enfoque de um jornalista e outro na minha visão de pesquisador acadêmico”, explica o autor. Defendem a democracia e denunciam o arbítrio, o autoritarismo da violência que contamina a sociedade brasileira e tenta confundir a opinião pública.
O Que não se repita não é uma mera republicação de artigos no Estadão. Os textos foram reescritos com o olhar do contexto atual. “Eu transformei tudo num relato retrospectivo, como um diário de bordo de um cidadão perplexo com absurdos como a pandemia. A ideia do livro é a manutenção da memória, para que a sociedade não repita o mesmo erro”. A obra começa falando que a história não se repete, mas que ensaia uma repetição – referindo-se a época do golpe e da ditadura militar.
O maior exemplo da tentativa de apagar nossa memória recente de acontecimentos sociais e políticos é a ideia da anistia à condenação de Jair Bolsonaro e dos presos pelos atos de depredação do 8 de janeiro, segundo Bucci. “A anistia é um esquecimento oficial”, denuncia. “Apesar que o movimento morreu um pouco porque ficou juridicamente insustentável, mas é uma alternativa para algumas cabeças”.
Já em A razão desumana, Bucci analisa temas específicos, como o assassinato do homem negro George Floyd, por um policial branco, nos EUA em 2020, entre outros acontecimentos que questionam as consequências da desinformação. “O tema comum desses ensaios é esse tempo atual onde a técnica prevalece sobre os discernimentos humanos. Talvez, pela primeira vez na história, tenhamos uma aliança entre a técnica e o capital, como se o capital se valesse da técnica para implementar seus desígnios; como se a tecnologia encontrasse no capital sua própria doutrina”. Ele se refere ao uso das redes sociais, e agora da Inteligência Artificial, para manipular fatos e disseminar um discurso de ódio contra a ciência, o jornalismo e a própria democracia.
“Em Razão desumana vamos encontrar exemplos tão grandes de desprezo pela dignidade humana que talvez nos lembre, não da Idade Média, mas da Revolução Industrial do século 19. Estamos convivendo com indústrias que usam, por exemplo, técnicas para induzir crianças e adolescentes a usar jogos de apostas, num desrespeito a dignidade dessa faixa etária, e tudo isso a céu aberto, numa grande desfaçatez. Lembra um Estado sem lei”, dispara Bucci.
Vivemos outros absurdos, continua o autor, como a tentativa de Donald Trump de interferir na justiça brasileira, alegando que a condenação – que ainda não aconteceu – de Bolsonaro é uma caça às bruxas e que deveria ser deixado para o eleitor decidir, querendo sugerir que o ex-presidente volte a ter seus direitos políticos que foram caçados pela Justiça. Bucci lembra que não estamos apenas falando de atores políticos sugerindo golpes e atacando a democracia. Como aconteceu em 1964, temos empresários participando e financiando a tentativa de golpe.
Papel da imprensa e da universidade
O que a sociedade pode fazer para dar um basta nessa situação? Bucci sugere que faltam muitas coisas. Entre elas, “precisamos de uma imprensa que nomeie as coisas como elas são. Se uma força política elogia a ditadura, como foi feito na campanha de Bolsonaro em 2018, isso deve ser dito claramente, porque é incompatível com a ordem democrática. A imprensa deve estar atenta a um papel que só ela pode cumprir, que é caracterizar cada fenômeno, cada agente que está em disputa na esfera política.
Outra frente de resistência está na universidade, segundo ele: “Nós, da universidade, devemos estudar profundamente esses impasses de nosso tempo, a tirania da técnica aliada ao capital, e oferecer leituras críticas para a sociedade. A universidade é o local para encontrar soluções com base na ciência. Mesmo na época da pandemia, sua contribuição foi muito valiosa. E a universidade é importante pelo pensamento crítico e a liberdade de cátedra, o que ajuda a sociedade a perceber esses impasses.
Regulamentação das redes sociais
Um terceiro ponto é o papel do Estado, relaciona o professor e jornalista. “O único caminho para conter os danos causados pela técnica, pelo capital, é a regulamentação. E está acontecendo em vários países, inclusive a regulação da inteligência Artificial. Uma das frentes que podemos contar com agendas positivas de coisas que devem ser feitas está no Executivo, no Judiciário e no Legislativo”.
A respeito da regulação das redes sociais, Bucci lembra que o Supremo Tribunal Federal (STF) flexibilizou o artigo 19 do Marco Civil da Internet, que trata da responsabilidade civil de provedores de aplicações de internet por conteúdos gerados por terceiros. “O artigo 19 é o que garantia que um conteúdo só pudesse ser derrubado somente por uma ordem judicial. A decisão do Supremo muda um pouco isso, mas ainda pode ser aperfeiçoada”. O STF declarou o artigo 19 parcialmente inconstitucional, estabelecendo que plataformas digitais podem ser responsabilizadas por conteúdos ilegais sem necessidade de ordem judicial prévia, especialmente em casos de conteúdos impulsionados, disseminação massiva de conteúdos graves e casos de discurso de ódio e outros crimes.
“É uma matéria legal nova, e o Judiciário pode errar na dose, na caracterização, mas é algo positivo e alguma responsabilidade suplementar tem que ser repassada para as plataformas digitais. Elas precisam responder judicialmente pelas coisas que estão fazendo” – que é liberar e difundir mentiras e desinformação, e anda remunerar seus autores por isso com a monetização de cliques.
Ou seja, os livros de Bucci apontam que um novo futuro pode ser construído agora, se analisarmos e refletirmos com cuidado e censo crítico mirando o que aconteceu no passado recente, e o que está acontecendo agora na política brasileira. E conclui A razão desumana, dizendo que a conclusão inexiste. Bucci avalia que “uma sociedade que se nega a conhecer os fatos não é nada além de uma chusma que renuncia à textura política e se rende ao transe do mercado. O que vem a seguir não é bem uma nova ordem, mas uma desordem obscura, sem paralelo com nada que tenhamos visto. Um mundo sem jornalismo será um mundo sem democracia – e, ironia das ironias, será também um mundo sem liberalismo”.
“Foi então que a coisa descarrilou. Quando a procissão auriverde chegou ao Congresso Nacional, veio o transe. A turba invadiu a sede do Legislativo e começou a quebrar tudo lá dentro. O Supremo Tribunal Federal também foi invadido, assim como o Palácio do Planalto. Cada uma das sedes dos três poderes virou alvo de uma depredação que jamais fora vista na História do Brasil. Os agressores vandalizaram obras de arte, trituraram relíquias, espatifaram vidraças e espalharam imundície.” (Que não se repita)
“No meio daquilo tudo, existia o lugar estranho que tinha sido reservado para um objeto de uso diário por milhões de brasileiras e brasileiros: a caneta Bic. Com seu corpo em plástico transparente sextavado, com sua tampinha azul, a esferográfica genérica tinha virado acompanhante fiel do presidente. Que destino dilacerante o que foi sobrar para ela. Que injustiça clamorosa.” (Que não se repita)
“Desprovida da presença humana, essa técnica, tornada razão, a valer sua autoridade sobre os humanos. Ela é poder. Ela é o saber” (A razão desumana)
“A desinformação não se constitui num ‘conteúdo’, mas num ambiente comunicacional que interdita o acesso ao conhecimento e gera um artefato no mínimo desconcertante: a ignorância artificial”. (A razão desumana)
“A produção desse capitalismo reinventado aprendeu a explorar a imaginação domesticada, a inteligência alienada, o espírito caído, ausente, e nada disso se mede mais pelo relógio. O capital já não explora mais o suor, explora o engajamento pulsional”. (A razão desumana)