O estigma de ser negro no jornalismo e também fonte do noticiário

Ativistas e profissionais negros afirmam que o preconceito precisa ser enfrentado também dentro das redações de jornais pela desigualdade no ambiente de trabalho e nos textos que exprimem o racismo estrutural

As dificuldades que a população negra enfrenta ao longo da vida devido ao preconceito são muitas, e os dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatísticas (IBGE) apontam isso. Por mais que 56% da população brasileira se considere negra ou parda, uma pesquisa do Instituto Locomotiva, que ouviu 1.200 pessoas, comprova que 65% dos entrevistados já foram vítimas de preconceito durante o expediente de trabalho, e 72% já presenciaram situações de racismo em empresas. 

No jornalismo brasileiro, a realidade vivenciada é a mesma, aponta Edilaine Felix, citando a pesquisa Perfil Racial da Imprensa Brasileira, divulgada no Dia da Consciência Negra do ano passado: só a categoria branca é majoritariamente com 77,6% de presença nas redações;  20,1% são pretos e pardos; 2,1% amarelos; e 0,2% indígenas.

A pesquisa mostra também que 61,08% dos cargos gerenciais no jornalismo como colunista, editor-chefe, editor e diretor de redação são brancos. Com relação aos casos operacionais, o caso se inverte, 60,7% são ocupados por negros e 38,2% por brancos.

Marcelle Chagas

“O impacto econômico do racismo se desmembra em diferentes áreas”, desabafa a jornalista Marcelle Chagas, coordenadora da

Valéria Lapa

“A jornada para um jornalista negro é complexa e longa. Há 20 anos, quando escolhi que iria cursar jornalismo, não havia professores e alunos negros, os nossos espaços são reduzidos, precisamos batalhar e brigar muito por eles”, destaca a jornalista Valéria Lapa, também uma das organizadoras do  Encontro Internacional. Valéria é jornalista da Fundação Amazônia Sustentável.

Há 20 anos atuando no jornalismo, Valéria recorda que ainda existe racismo nos jornais e revistas, os quais muitas vezes refletem termos e narrativas racistas colocando o negro como bandido, sem conceder a presunção de inocência. “Existe racismo e preconceito nos jornais brasileiros. Todos os preconceitos aparecem na comunicação, aparecem já no lide das matérias”. Ela questiona: “Por que simplesmente falar de um suspeito negro e determinar a descrição de um branco de outra forma? O que os jornais traduzem é uma continuidade do preconceito, e é contra isso que lutamos”.

Diante do cenário desigual nos últimos anos, profissionais do jornalismo vêm cobrando as grandes empresas uma maior presença de negros dentro das redações, segundo Valéria, o que seria uma forma de combater o racismo intrínseco nas manchetes e textos. 

O ativista e jornalista Luís Cláudio Alves vê as mídias sociais como uma forma de abrir mais espaços para negros: “O povo preto precisa ser protagonista e ser dono das próprias mídias. São poucas as comunidades quilombolas que tem sua rádio, precisamos estar no protagonismo das comunicações”.

Alves acredita que nos últimos anos houve avanços, porém ainda há discriminação no campo da comunicação. “Nossa luta avançou bastante, com grandes jornalistas em grandes veículos, mas precisamos brigar para estar em mais lugares, porque pouco se fala das necessidades do povo preto”. 

Muitos ativistas acreditam que a mudança de posicionamento da mídia em favor da maior inclusão de negros em seus jornais se deu pelo caso George Floyde, nos Estados Unidos, em maio de 2020. Quando, após a morte de um homem negro por um policial branco, membros da sociedade civil se organizaram em todo o mundo pedindo o fim da violência policial contra negros e por direitos igualitários. No Brasil, lideranças de movimentos sociais criticaram a cobertura da imprensa por ser representada por maioria branca, e a existência de poucos espaços de fala de jornalistas negros.

Edilaine Felix

A professora de comunicação Edilaine Felix lembra que “em 2020, quando emissoras discutiam racismo, apenas com pessoas brancas”, o público e ativistas começaram um movimento pedindo maior representatividade nas emissoras e sites de comunicação. “O público começa a questionar e o próprio jornalismo começa a querer mudar. Muitas vezes a transformação vem através de críticas dos telespectadores”, afirma a professora.

Edilaine recorda que, quando estava na graduação, não havia muitos profissionais negros e alunos negros no jornalismo, porém, “hoje o cenário mudou, tivemos  mais representatividade graças a políticas de ensino, cotas para os negros para ingresso nas universidades; não víamos isso antes”. Segundo a profissional, a universidade também tem o dever de discutir questões de raças para que o racismo estrutural não ganhe mais espaço nas redações.

Revista Dumela, uma publicação contra o racismo

A professora Edilaine foi uma das criadoras da revista Dumela, focada na preservação da memória dos afrodescendentes e para conscientizar acadêmicos contra o racismo. O magazine é editado pela Centro Universitário FMU, com a participação de alunos de diversos cursos, mas sob a responsabilidade do departamento de Jornalismo da instituição. “A revista foi criada em 2018 sob o comando do Núcleo Étnico Raciais da FMU, com o intuito de trazer pautas antirracistas e trazer o debate para dentro da universidade”, conta a professora.

Vera Lúcia revela que foi encorajada a criar a revista depois de publicar sua tese sobre temas que permeiam as questões de raça. “Quanto eu fiz minha tese, estudei o papel do professor negro e por isso a instituição me convidou para criar um produto para fazer a memória de todas as atividades que faziam no Núcleo Étnico”, diz Vera.

Para a professora, é importante ter um veículo dentro da universidade que trate das questões de raça, principalmente por considerar um lugar propício ao debate e a descontração de preconceitos que não serão levados para as redações ou para o ambiente de trabalho. “Quando criamos o Dumela, criamos também um grupo sobre igualdade de gênero para enriquecer o debate, para quando chegar na redação ou no ambiente profissional, o aluno poder educar o outro e ver a relação com o diferente de outra forma”, finaliza Vera.

Ponte Jornalismo, um site denuncia o racismo estrutural

Jéssica Santos

Jéssica Santos, editora de relacionamento do site Ponte Jornalismo conta como surgiu esse veículo que combate o racismo estrutural: “O veículo foi criado em 2014, pelo jornalista André Caramante, para denunciar formas de racismo e violências policiais contra negros e se tornou um dos principais órgão de comunicação do gênero. Atualmente no site atuam sete profissionais, sendo dois jornalistas que são os responsáveis por fazer a cobertura de todas as pautas. Ao ano são publicados mais de mil textos, três materiais ao dia, com acesso gratuito. E concede benefícios para apoiadores que ajudam a manter o site, como participação em eventos e envio de textos antecipados.  Para a jornalista, “a imprensa tem um lado e não é o lado do negro. Queremos contar histórias, humanizar o jornalismo. A mancha de sangue não é só um número, ela carrega uma história”. 

Racismo contra repórter negros

O racismo não está somente nas pautas da Ponte. A jornalista relata que os repórteres negros do site também são vítimas de preconceitos quando estão no exercício do seu trabalho: “O nosso repórter negro já foi abordado 31 vezes pela polícia, três num mesmo dia. Uma pessoa branca não toma tantos enquadros por dia, existe a pele alvo e ela atinge também jornalistas”.

Segundo a pesquisa ” Elemento Suspeito”, coordenada pelo Centro de Estudos de Segurança e Cidadania (CESeC), 63% dos negros da cidade do Rio de Janeiro já sofreram agressão policial, 17% já foram parados mais de 10 vezes pela polícia. Em São Paulo, segundo o  Instituto de Defesa do Direito de Defesa (IDDD), negros que declaram ter sido abordado mais de 10 vezes somam 19%. A jornalista afirma que com o alcance do site é possível conscientizar a população falando de racismo, necropolitica, sem ser didático ou impondo um pensamento: “Eu não quero ensinar, mas conversar, que fazer refletir pelo outro lado que o Datena está mostrando”.

Um guia para contratar com diversidade

Também aproveitando o gancho do Dia da Consciência Negra, o IAB Brasil, associação sem fins lucrativos que trabalha pelo desenvolvimento e a evolução da publicidade digital no Brasil, anunciou a chegada do “Guia para uma Contratação Diversa”, com dicas para empregadores e líderes de empresas construírem times diversos, com base na inclusão propositiva.

Os negros, assim como as pessoas com deficiência (PCD), mulheres cisgênero, transsexuais e indígenas muitas vezes não encontram oportunidades no mercado corporativo, segundo o IAB.

Para Lucas Reis, presidente do Comitê de Diversidade e Inclusão (D&I) do IAB Brasil, esta situação está mudando, mas ainda existem medidas que as empresas podem tomar para garantir mais diversidade e inclusão no ambiente de trabalho. “Atualmente, agências, anunciantes, plataformas e veículos têm criado áreas dedicadas à diversidade e inclusão, além de definir metas nesse sentido. Times mais diversos tendem a oferecer contribuições mais ricas para projetos e negócios, pois refletem vivências diferentes e a troca de experiências entre colaboradores”, diz ele.

Luiza Oliveira

Pensando nisso, o “Guia para uma Contratação Diversa”, criado pelo Comitê de D&I do IAB Brasil sob a liderança de Luiza Oliveira, a vice-presidente deste comitê, se propõe a auxiliar na condução da formação de times cada vez mais diversos, trazendo dicas de ações que podem ser implementadas em todo o processo de recrutamento, contratação, convivência e monitoramento da equipe dentro das empresas, abrangendo assim todo o processo para incluir grupos minorizados na força de trabalho das corporações.

 

O protagonismo da comunidade preta no consumo e mídia

A Nielsen, líder global em insights de audiência, dados e análises, apresentou o estudo “Afroconsumo – O protagonismo preto no consumo brasileiro”. Desenvolvido no Brasil, junto com o seu grupo de diversidade organizacional Sustainable Active Black Leadership & Empowerment (SABLE), o levantamento tem como objetivo mostrar como a comunidade tem movimentado a economia do país por meio de seus hábitos de consumo.

“Nos últimos anos, o potencial de consumo da população preta vem ganhando relevância”, destaca Sabrina Balhes, líder de Measurement da Nielsen Brasil. Segundo o levantamento Nielsen, 33% do público preto/pardo utiliza, em média, smartphones por mais de 20 horas por semana. Além disso, 67% afirmou ter realizado compras online nas últimas quatro semanas. Entre as plataformas de streaming, 88% da comunidade tem acesso à Netflix. Na sequência aparecem Amazon Prime (55%), HBO Max (43%), Disney+ (36%) e Paramount (16%). Com isso, a população preta afirma que séries e filmes são considerados os conteúdos com mais presença de temas raciais. Entre conteúdos produzidos por influenciadores, as preferências são músicas (56%), séries (48%) e filmes (45%).

Além de ajudar a entender o perfil da audiência como um todo, de suas particularidades, a pesquisa apresenta as preferências de conteúdos produzidos por influenciadores, presença no ambiente online e opinião sobre representatividade em propagandas e produções de TV, fazendo um comparativo entre a comunidade e a população em geral.

Aumento da inclusão apesar dos desafios

A percepção de representatividade da audiência preto registrada no estudo Nielsen mostra que o país trilha para um caminho mais inclusivo. Mais de 75% dos entrevistados consideram que seu ambiente de trabalho é um local inclusivo. No meio digital, a tendência de crescimento segue, pois 54% da comunidade considera haver uma alta representatividade de pessoas pretas nos conteúdos que estão consumindo. Em contrapartida, 88% afirmam se lembrar de pessoas brancas nos últimos anúncios lembrados pelo consumidor, índice que fica em 72% para a população preta.

Perfil no mercado de trabalho e cenário educacional

No cenário educacional, a pesquisa identificou que 6% dos respondentes disseram que estudam ao serem questionados sobre qual é sua principal atividade durante o dia. A pesquisa sinaliza que 7 em cada 10 pessoas da comunidade preta/parda estão atualmente empregadas e 48% recebem entre 2 e 4 salários-mínimos. Este público vê mais pessoas pretas ocupando cargos operacionais em seu ambiente de trabalho, com cerca de 65% tendo se lembrado de ver colegas pretos em cargos como auxiliar, assistente e analista.

 

 

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