Como promover uma comunicação antirracista

Grupos da sociedade civil e do movimento negro, entre eles a Federação Nacional dos Jornalista, se unem para cobrar do governo federal uma política de comunicação antirracista

O chamado racismo estrutural no Brasil, composto por um conjunto de práticas e situações que promovem o preconceito e limitam a entrada de negros e sua ascensão em cargos corporativos, além do apagamento da contribuição história desse povo para o desenvolvimento do país, também acontece dentro das reações e das agências de relações públicas.  É algo que influência negativamente na contratação de pessoas pela cor de pele, e mais do que isso, os meios de comunicação reforçam narrativas preconceituosas quando a notícia tem personagens negros.  Apesar de mais da metade da população no Brasil seja composta pelos pretos e pardos (56,7%, segundo o censo do IBGE em 2024), apenas 20,1% dos jornalistas das redações brasileiras se autodeclaram pretos ou pardos, segundo estudo da Universidade Metodista de São Paulo.  A A jornalista negra Valdice Gomes tem militado por essa causa há 20 anos. Atualmente ela lidera a Secretaria de Gênero, Raça e Etnia da Federação Nacional dos Jornalistas (Fenaj), participa da Comissão Nacional dos Jornalistas pela Igualdade Racial (Conajira) da Fenaj e integra a Articulação pela Mídia Negra.

A Articulação, que é composta por uma coalizão de 55 organizações, incluindo veículos de comunicação, entidades e coletivos, iniciou o diálogo com o governo federal, antes da posse de Lula, com a equipe de transição instalada em novembro de 2022. Em 11 de julho de 2023, Valdice Gomes foi uma das jornalistas que entregou à Secretaria de Comunicação (Secom) da Presidência da República e ao Ministério da Igualdade Racial, em Brasília, um documento sugerindo uma série de políticas públicas para fomentar e incentivar a produção e difusão de notícias relevantes para comunidades negras, periféricas e indígenas. Entre as propostas estão: a criação de um Fundo de Fomento a Mídias Negras; Mudanças de regras de concessão; Política de Diversidade na Concessão de Rádio e TV; e Inclusão de Política de Diversidade e Ação Afirmativa na Verba Publicitária do Governo. Além de contribuir para a elaboração de um plano de comunicação antirracista pelo governo federal, a Articulação teve influência na negociação do projeto de Lei 2.370 de 2019, especificamente na redação do parágrafo 14, que visa fortalecer o jornalismo nacional e independente, além de valorizar e contratar jornalistas e trabalhadores da área.

No dia 3 de dezembro, o governo lançou o Plano de Comunicação pela Igualdade Racial, mas a Articulação pela Mídia Negra criticou o documento que não inclui as propostas de políticas públicas de comunicação antirracista e para o fortalecimento dos veículos. “Isso significa um apagamento da contribuição”, segundo Valdice Gomes.

Nesta entrevista a jornalista, que é editora da Coluna Axé, publicada semanalmente no jornal Tribuna Independente e ex-presidente do Sindicato dos Jornalistas de Alagoas, fala do enfrentamento ao racismo, e como a mídia contribui com estereótipos que reforçam esse problema:

Foi elaborada uma Nota Técnica com o título “Apagamento da Articulação pela Mídia Negra no Grupo de Trabalho Interministerial de Comunicação Antirracista do Governo Federal”. Qual o propósito?

Esta nota técnica tem como objetivo destacar a falta de transparência na elaboração de ações do Grupo de Trabalho Interministerial (GTI) Comunicação Antirracista do Governo Federal, bem como o apagamento da incidência da Articulação pela Mídia Negra na construção e execução dessas ações, tais como o Plano de Comunicação pela Igualdade Racial lançado esta semana. O GTI, criado visando formular políticas públicas para promover a igualdade racial no campo da comunicação, falhou em não incluir de forma transparente e reconhecida as ações e contribuições da Articulação pela Mídia Negra, um grupo que desempenhou papel fundamental na sua concepção e foi formado em 2022. A Articulação pela Mídia Negra é composta por 55 organizações lideradas por jornalistas e comunicadores de grupos sub-representados de todo o Brasil, entre veículos, empresas de comunicação, entidades e coletivos de produção e difusão de notícias que dizem respeito à comunidade negra e à promoção da igualdade racial na mídia.

E o que aconteceu?

Tivemos dificuldades de agendar audiência com o ministro Paulo Pimenta, da Secom. Depois de muitas tentativas, ampliamos nossa atuação para outros ministérios e tivemos reuniões com representantes da Secom e com a ministra da Igualdade Racial, Anielle Franco e sua equipe para tratar do assunto. Em uma ampla reunião com vários ministérios, em Brasília, em julho do ano passado, entregamos o documento. É uma luta antiga de entidades do movimento negro, de jornalistas e comunicadores negros pois, em 2009, também no governo Lula, participamos com propostas na 1ª Conferência Nacional de Comunicação (Confecom) e das Conferências Nacionais de Promoção da Igualdade Racial, com propostas de políticas públicas de comunicação antirracista. Precisamos de política de ações afirmativas na distribuição da verba publicitária do Governo Federal, que contemple a mídia negra. E isso é necessário para que ela possa se desenvolver. O Brasil é um país que reconhece a existência do racismo, e precisa enfrentar o problema em todas as esferas, inclusive na comunicação. É preciso enfrentar essa realidade. Somos militantes, nossa luta é pelo povo negro e a resistência continua.

Qual é o problema basicamente?

O Brasil é um país de maioria preta e parda, mas isso não se reflete dentro das organizações públicas e privadas e muito menos nas redações.  Não é só uma questão de acesso, e sim também de ter oportunidades de se desenvolver, conquistar cargos de chefia. Falta diversidade. Outro ponto é a narrativa ainda vista na mídia, que coloca com preconceito o personagem negro e, principalmente, pobre, e ainda mais mulheres negras. Reforça um estereótipo, sempre ligado à pobreza, a violência e a notícias policiais. Não mostra ainda a diversidade de fontes. Falta respeito nas abordagens das reportagens ressaltando estereótipos nocivos e reprodutores do racismo. Esquecem a contribuição do negro no desenvolvimento do país, nas artes, na cultura, nas ciências, na política. Por isso defendemos que a Secom tenha uma política que estimulem a promoção da diversidade dentro das redações como pré-requisito para os veículos receberem verbas de publicidade. Tem que ter regras nesse sentido.

O que o governo federal pode fazer para esse enfrentamento?

É necessário um grande plano de capacitação em letramento racial das pessoas que trabalham na área de comunicação do governo, com promoção da diversidade, que possa refletir dentro do governo e para a sociedade em geral. Dar o exemplo internamente. Definir qual política o governo vai implementar em termos de ações afirmativas para que os veículos de comunicação implementem a diversidade nas redações, nas fontes, mostrando e dando voz para grupos sub-representados, sem estereótipos. O Brasil tem muito a avançar nessa área e ser um exemplo de políticas públicas de comunicação antirracista e combate a narrativas discriminatórias.

Como a Fenaj se engajou nisso?

A Fenaj vem se engajando e estimulando essa luta desde a criação da primeira Comissão de Jornalistas pela Igualdade Racial (Cojira), em 2000, no Sindicato dos Jornalistas de São Paulo. Em 2010, foi criada a Comissão Nacional dos Jornalistas pela Igualdade Racial (Conajira), no âmbito da Fenaj. E por decisão do último Congresso Nacional dos Jornalistas, a federação vem adotando internamente essa política. Implementando cotas para mulheres, negros e negras, quilombolas e indígenas dentro da diretoria da entidade. E recomendando esse cuidado para a diretoria de todos os sindicatos de jornalistas filiados. Integrou através da Conajira, o Conselho Nacional de Promoção da Igualdade Racial (CNPIR), gestão 2010/2012. Atualmente existem coletivos de jornalistas pela igualdade racial em 12 Sindicatos de Jornalistas. Além disso criou na sua Diretoria a Secretaria de Gênero, Raça e Etnia.

Qual o contexto a comunicação antirracista? Quais avanços e retrocessos?

A primeira campanha eleitoral de Donald Trump nos EUA, em 2016, evidenciou novamente o impacto devastador da desinformação e da polarização digital. Essa fórmula, já conhecida como um “modelo de sucesso” em campanhas políticas, precisa ser urgentemente enfrentada.

A comunicação antirracista é essencial para garantir a integridade da informação. De acordo com a UNESCO, é fundamental que os meios de comunicação combatam narrativas discriminatórias e amplifiquem as vozes de comunidades marginalizadas, promovendo representações diversas e equitativas. Esse compromisso fortalece a liberdade de expressão, combate a desinformação e contribui para sociedades mais justas, onde a diversidade cultural e racial é respeitada e valorizada como pilar da democracia.

Antes da posse do presidente Luiz Inácio Lula da Silva, representantes da Articulação pela Mídia Negra já se reuniam com a equipe de transição do futuro governo, em dezembro de 2022, para falar da importância das políticas de comunicação pela igualdade racial e chamar a atenção do governo em relação à interferência das fake news na comunicação e no processo democrático do país.

Como resultado de toda essa articulação com o Governo Federal, em 20 de novembro de 2023, Dia da Consciência Negra, o Presidente da República Luiz Inácio Lula da Silva assinou o decreto nº 11.787, instituindo o Grupo de Trabalho Interministerial Comunicação Antirracista, com a finalidade de elaborar proposta do Plano Nacional de Comunicação Antirracista.

O Governo Federal, por meio da Secretaria de Comunicação Social da Presidência da República e do Ministério da Igualdade Racial, deu início à consulta pública para ouvir a sociedade civil para reunir subsídios para a elaboração do Plano Nacional de Comunicação Antirracista.

No dia 13 de setembro de 2024, a Articulação pela Mídia Negra lançou o Relatório de Impacto como um marco na luta pela democratização na comunicação e referência para o desenvolvimento de políticas públicas que fortalecem a democracia e criam um ecossistema informativo mais inclusivo e diverso no Brasil.

O momento atual exige responsabilidade e compromisso. É essencial permanecermos vigilantes e empenhados na construção de um ambiente informativo mais justo, plural e transparente — pilares indispensáveis para a consolidação da democracia no Brasil. A luta por uma comunicação verdadeiramente antirracista e inclusiva é contínua e essencial para a preservação da democracia. E dela, não abriremos mão.

 

 

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