Por João Marcos Rainho
Se um indivíduo quiser marcar um quebra-quebra em algum órgão público com seu grupo de afinidade ou promover uma campanha de desinformação, ódio ou difamar alguém, ou ainda promover a destruição da democracia e debochar da liberdade de opinião, encontrará nas redes sociais um palco de grande audiência, e o melhor: certeza da impunidade. Essa situação está no radar do governo Federal, do Congresso e do Judiciário, seguindo uma tendência internacional de por um limite numa situação sem controle que pode causar danos patrimoniais e atentar contra a honra e a vida das pessoas.
As big techs se defendem repetindo o mantra de que não são veículos de comunicação, e sim fornecem uma plataforma para a ampla manifestação de opiniões, que qualificam como um atributo da liberdade de expressão. E que tem se esforçado, em seus mecanismos de controles internos, para combater o discurso de ódio, desinformação e outras práticas mais graves, como pedofilia, e atividades criminosas diversas. A autoregulamentação da Meta, por exemplo, segundo a própria empresa, conseguiu remover 99,7% de contas falsas antes de serem denunciadas. O Youtube diz que, durante o terceiro trimestre de 2022, mais de 5 milhões de vídeos foram removidos previamente. Não são informações auditáveis. E pelo volume enorme de publicações que escapam desse pente fino, com todo o tipo de mentiras, difamações, agendamento de crimes (como aconteceu nos ataques à Brasíia no início do ano), entre outros problemas, parece que tais iniciativas empresariais são insatisfatórias.
Como declarou recentemente Carmén Lúcia, ministra do Supremo Tribunal Federal (STF), no programa Roda Viva, da TV Cultura, “as redes sociais têm que ser chamadas ao Estado Democrático de Direito, ou criaremos um ambiente de faroeste digital”.
Diversos eventos aconteceram no Brasil nas últimas semanas para discutir esse problema com especialistas e autoridades públicas. Em palestra na Conferência Global da Unesco, em fevereiro, o ministro do Supremo Tribunal Federal (STF) Luís Roberto Barroso, afirmou que as providências são urgentes: “Já ficou para trás o tempo em que se acreditava que a internet poderia ser livre, aberta e não-regulada”.
A hora de conter os excessos
As falas de Carmén Lúcia e Barroso encontraram eco em outros dois eventos que discutiram a liberdade de opinião x desinformação neste mês: O seminário “Desafios e Ações na Era Digital”, promovido pela Associação Brasileira de Emissoras de Rádio e Televisão (Abert) e pela Associação Internacional de Radiodifusão (AIR), ocorrido no Rio de Janeiro. E o fórum “Liberdade de expressão, redes sociais e democracia”, organizado pela Rede Globo na sede da Fundação Getulio Vargas (FGV) também no Rio de Janeiro.
No caso do evento da Abert, os participantes foram unânimes ao afirmar que as plataformas digitais devem responder, dentro da lei, por veicular desinformação. O problema é: qual lei? Porque o arcabouço legal que pune a desinformação sem afetar a liberdade de informação, ainda está sendo construído e os delinquentes do ódio aproveitam as brechas das democracia para bagunçar a cabeça das pessoas. Para as autoridades dos poderes Executivos, Legislativo e Judiciário, presentes no encontro, é preciso conter o discurso do ódio e as fake news.
A principal lei a respeito é o Marco Civil da Internet, que determina que as plataformas somente podem ser responsabilizadas pelo conteúdo de terceiros se forem notificadas judicialmente e não cumprirem a ordem. A proposta do Executivo quer punir as big techs antes da ordem judicial para alguns casos como transmissão de conteúdo de racismo, violação à Lei do Estado Democrático e se ferir o Estatuto da Criança e Adolescente. O Executivo brasileiro quer se espelhar também nas leis em vigor da União Europeia, o chamado “notice and action”, que acaba de ser promulgado e responsabiliza as redes se estas tiverem conhecimento sobre conteúdo ilegal — uma denuncia de usuário por exemplo — e não fizer nada. As plataformas declaram que isso será uma ameaça ao seu modelo de negócio.
Para Rose Marie Santini, do grupo NetLab e professora da UFRJ, as plataformas digitais são usadas para impulsionar informações falsas livre e impunimente e, ao mesmo tempo, atacar a mídia profissional. Ela apresentou estudos que comprovam sua tese. Nem precisaria. É bastante óbvio para quem navega nessas redes. Mas a especialistas estudou a fundo o assunto e comprovou que os ataques à imprensa são orquestrados e coordenados pois, segundo seus estudos, 30% dos sites que veiculam conteúdo de desinformação estão hospedados no exterior, dificultando o cumprimento de ordens da Justiça para apagar as postagens.
Segundo o NetLAb, cerca de 45% das postagens travestidas de “notícias” e que propagavam a disseminação de informação falsa contra a imprensa partiram de políticos “nanicos”. São os financiadores utilizando recursos públicos para bancar os ataques.
Democracia e jornalismo profissional sob ataques
Paulo Pimenta, ministro da Secretaria de Comunicação Social da Presidência da República (Secom) garante que o governo está finalizando uma proposta a ser enviada ao Congresso para complementar o que já existe na casa parlamentar sobre o controle das fake news — o projeto será apresentado pelo deputado federal Orlando Silva (PCdoB), também relator do PL 2630/2020, conhecido como “PL das fake news”, e deve contar ainda com contribuições do ministro Alexandre de Moraes, do Supremo Tribunal Federal (STF). A desinformação, segundo Pimenta, corrói e debilita a democracia e o jornalismo profissional.
O presidente da Abert, Flávio Lara Resende, pondera que as big techs e suas plataformas são bem-vindas e indispensáveis nos tempos atuais, mas admite que existem excessos que devem ser barrados em mecanismos oficiais de responsabilização.
O encontro promovido pela Abert gerou a “Carta de Brasília”, a qual, além de cobrar a responsabilização das redes, toca em outro ponto de interesse dos veículos de comunicação que é existir a garantia de remuneração justa das empresas de imprensa pelo conteúdo autoral distribuído indiscriminadamente pelas plataformas — que aliás, ganham dinheiro com isso. E ainda propõe a igualdade, perante a lei, entre empresas de mídia e as plataformas digitais, sem prejuízo da liberdade de expressão. Isso porque veículos de imprensa podem ser punidos pela desinformação e promoção do ódio, ao contrário das plataformas digitais das big techs.
Surto coletivo e a desinformação
No encontro no auditório da FGV, a única posição que passava a mão na cabeça das big techs foi a do presidente da Câmara dos Deputados, Arthur Lira (PP_AL). Ele defendeu o “caminho do meio” para julgar as questões relativas a liberdade de expressão, redes sociais e democracia. Mas na verdade é um caminho não do meio, mas sim de um lado: “Já não é mais preciso prender um cidadão para silenciá-lo ou para restringir drasticamente o alcance de suas palavras, pois jornalistas e parlamentares podem ser calados com um mero clique”. Na verdade, não é isso exatamente o que propõe as autoridades do executivo e judiciário. Por outro lado, Lira admite o jornalismo profissional como mecanismo contra a desinformação.
Mas isso não basta, segundo Andrei Rodrigues, diretor-geral da Polícia Federal, “discursos de ódio, preconceito e raiva manipulam parte da sociedade”, e citou como exemplo os ataques golpistas de janeiro em Brasília, que foram coordenados, divulgados, incentivados e agendados (e também comemorado no pós) via redes sociais. Rodrigues qualifica esses atos como um “surto coletivo”, uma “catarse”: “Não sei se as pessoas ainda acreditam estar no mundo virtual, mas não se dão conta de que estão no mundo real.”
Na mesma linha de pensamento, Flávio Dino, ministro da Justiça, ressalta que existe um entendimento internacional, que está sendo consolidado, que é necessário algum tipo de regulação para coibir as irregularidades nas redes sociais. E com o cuidado de não ferir o patrimônio democrático da liberdade de expressão.
Alguém tem que ser punido
A responsabilização por conteúdo divulgado deve ser mais rigorosa, segundo Alexandre de Moraes, ministro do Supremo Tribunal Federal (STF). Até porque, ele explica, as empresas que administram as redes sociais manipulam vergas publicitárias como um veículo de comunicação — “O maior volume de publicidade no mundo quem ganha são essas plataformas”, lembrou o ministro — e, portanto, não podem ser classificadas apenas como empresas de tecnologia, como elas insistem ser, para fugir até do autocontrole, que existe de certa forma, mas é muito frágil. Esse ponto é destacado por Gilmar Mendes, que avalia que as plataformas devem sim se responsabilizadas pelo conteúdo que disponibilizam, por já atuarem como uma espécie de tribunal ao julgar queixas de membros e moderar conteúdos, e até apagar conteúdos e banir membros sem qualquer interferência de órgão administrativo ou judicial.
Moraes confirma que as redes sociais foram “instrumentalizadas” no dia 8de janeiro, quando aconteceram os ataques as sedes dos três Poderes em Brasília: “Não podem mais fazer a política do avestruz. Não podem mais esconder a cabeça embaixo da terra e falar: ‘Não temos nada a ver com isso’. Têm”, disparou. Confirmando a tese de Carmén Lúcia, Moraes complementa que não é possível tratar as redes sociais como terra de ninguém. E especifica suas acusações dizendo que a extrema direita é responsável por esse estados de coisas por compreender o modo de funcionamento da mobilização via redes e descobrir que era possível manipular as informações. “não é possível permitir nas redes o que não é permitido na vida fora dela”, comparou o ministro lembrando que a cadeia de crimes digitais inclui a pedofilia e o racismo.
Ou, como diz o filósofo alemão Peter Sloterdijk — considerado um dos grandes renovadores da filosofia contemporânea —, estamos voltando à época da arena romana, que trucidava cruelmente o que se conhece como verdade e o verdadeiro espírito critico, jogando-os literalmente aos leões, privilegiando uma falsa sociedade do espetáculo, do circo e pão. “Uma nova arena geral e virtual da sociedade midiática de entretenimento”, compara ele, numa entrevista ao El País. “Uma metarena totalitária. Algo que vai muito mais além da sociedade do espetáculo de Guy Debord e que serve para dirigir o ressentimento das massas”.