Quem diria que chagaríamos ao ponto de discutir o que é verdade e o que é mentira no que se entende como meios de comunicação eletrônica, hoje monopolizado por algumas big techs, que contamos nos dedos de uma mão — e sobram dedos. E se discute verdade/mentira até nas esferas governamentais, legislativas e judiciárias. Parece algo objetivo, mas não é, pelo menos para grupos sectários que contam com as brechas da lei e surfam na tolerância da democracia para propagar uma agenda com o objetivo de confundir e instigar todo tipo de confusão, desordem, baderna, violência e, como diziam os militares na ditadura — que alguns querem negar ou elogiar —, “subversão” à lei à ordem, usando as redes sociais. Só que agora a lei e a ordem não são atributos escolhidos por quem não tem legitimidade de governar, legislar ou discutir regras. Estamos numa democracia e num Estado de Direito. O próprio Alexandre de Moraes, ministro do Supremo Tribunal Federal, opinou várias vezes que “mídia social não é terra sem lei”.
Pois bem. A coisa é mais complicada. O Projeto de Lei 2630/2020, também conhecido como a “lei das Fake News”, foi apresentado no Congresso Nacional em 2020. Ficou três anos de molho. Quase foi votada agora, mas um acordão, bem manipulado e pressionado pelo poderoso lobby dos aplicativos de mensagens, sites de busca e mídias sociais. O plural aqui é mero eufemismo.
A discussão segue uma tendência nos países desenvolvidos: colocar limites na livre expressão do crime. Hoje é proibido proibir nas redes sociais e nos aplicativos de mensagem… pode-se difamar, mentir, distorcer fatos, atacar reputações, combinar assalto com a turma, falar do nazismo e anunciar que vai atacar uma escola com data e horário, criar narrativas fantasiosas, comprar drogas, armas, sexo, chip clonado, cartão clonado, gato da net, senhas, CPFs, o diabo.
O instrumento disso tudo, como um mural público digital, diz não ter nada a ver com o que é publicado, e se monitorar será censura. Não é bem assim, pura fake news, o que se quer é estabelecer limites razoáveis dentro até do que a lei já define na vida normal. A coisa travou em alguns pontos que foram acrescentados na PL: remuneração dos veículos de imprensa por parte das big techs, impunidade ou não dos políticos usarem as redes para mentir, falar e postar o que quiser e agredir adversários, e um dos pontos usados como desculpa de um nó: quem será o responsável por definir o que será publicado o não. O governo federal sugeriu uma agência a ser criada. Foi uma brecha para dizer que o governo quer ser um Grande Irmão, nos moldes do livro 1984 de George Orwell. controlando tudo o que é falado por aí.
A Alphabet/Google e Meta/Facebook contra-atacaram com comunicados oficiais incutindo o medo nos usuários, dizendo que acabaria com a liberdade e a privacidade e que seria impossível controlar conteúdos. Afinal, as big techs sempre negaram que sejam empresas de conteúdo, de jornalismo ou até comunicação. São apenas “empresas de tecnologia”, como ressaltam. Os intermediários. Agora, atuaram editorialmente no calor das opiniões e ideologias.
Até o Telegram, aplicativo russo que brinca de gato e rato com a Justiça, e sempre escondeu quem era o responsável no Brasil, saiu de sua deep web para enviar mensagem aos membros copiando as acusações do Google e Facebook e dizendo que falava por todos. Quebrou sua propria regra de imparcialidade. O Google e Facebook desmentiram o comunicado do concorrente dizendo que não tinham nada a ver com aquilo.
Relembrando
Em junho de 2020, a proposta foi apresentada pelo senador Alessandro Vieira (Cidadania-SE) e pelo deputado Felipe Rigoni (PSB-ES), com o objetivo de combater a disseminação de fake news e a desinformação nas redes sociais.
A partir daí, a matéria tramitou na Câmara e recebeu diversas emendas, debates e negociações.
No mesmo mês, o deputado Orlando Silva (PCdoB-SP) tornou-se relator do PL 2630, quando foi designado para a função pela Mesa Diretora da Câmara dos Deputados. Desde então, ele tem liderado as discussões sobre o projeto apresentado alterações e ajustes ao texto original. O relator é responsável por avaliar e sugerir mudanças no texto, além de apresentar um parecer sobre a aprovação ou rejeição do projeto.
Em setembro de 2020, o documento foi aprovado por uma comissão mista do Congresso Nacional, composta por senadores e deputados. O texto seguiu para a análise da Câmara dos Deputados. Durante esse período, a proposta recebeu grande atenção e enfrentou pressões de diferentes grupos, incluindo empresas de tecnologia, organizações da sociedade civil e membros do então governo federal.
Em junho de 2021, após diversas reuniões e negociações, a Câmara dos Deputados aprovou o texto da PL 2630 em um formato mais enxuto, entre as principais mudanças, a versão aprovada da lei determina que as empresas de tecnologia devem implementar medidas para combater a desinformação, identificar usuários que cometem abusos e garantir a transparência em suas operações.
Nos últimos meses, o PL sofreu várias alterações e adiamentos na sua votação. Algumas das mudanças recentes incluem:
– A introdução de um artigo que prevê a criação de um Fundo de Combate à Desinformação, com recursos provenientes da iniciativa privada e do poder público;
– A inclusão de dispositivos para proteger a liberdade de expressão e a atividade jornalística;
– A alteração do nome da lei para “Lei Brasileira de Liberdade, Responsabilidade e Transparência na Internet” para refletir as mudanças feitas;
– A votação foi adiada várias vezes devido a desacordo entre os parlamentares em relação a pontos específicos da PL.
O deputado e relator do Projeto acredita que a lei trará benefícios para os usuários e para as empresas, além de punir quem divulgar notícias falsas. “Nós acreditamos que a democracia é algo muito importante e que o acesso à informação é fundamental para isso. A nossa decisão é continuar trabalhando para produzir um texto que dê conta de garantir a nossa liberdade de expressão, mudar a regra de responsabilidade dessas big techs que usaram e abusaram do seu poder econômico”, afirmou o deputado em vídeo publicado em seu perfil no Instagram. A Negócios da Comunicação tentou entrar em contato com o deputado através de e-mail, mensagens de WhatsApp e não teve retorno.
Imprensa quer solução
Associações e órgãos ligados a jornalistas e imprensa veem a proposta com simpatia, por acreditar que pode regularizar a situação das big techs no país e frear de forma efetiva a disseminação de notícias falsas no campo digital.
Uma das principais críticas é em relação à possibilidade de exigir a identificação de usuários de redes sociais e mensageiros, o que poderia limitar a privacidade e a liberdade de expressão dos usuários.
A Federação Nacional dos Jornalistas (FENAJ) destacou em nota que apoia a ideia de regular democraticamente as plataformas digitais, apesar de expressar oposição à pressa na tramitação do projeto. A associação afirma que defende a remuneração do conteúdo jornalístico, um tema que deve ser tratado separadamente em outro projeto.
Um dos pontos mais polêmicos é justamente a questão da remuneração dos jornalistas. A proposta em si é bastante ampla e prevê uma série de medidas para combater a disseminação de informações falsas na internet. Porém, a forma como isso será feito ainda é motivo de controvérsia. Entretanto, diversos países do mundo já regulamentaram isso.
No projeto, associações querem que exista uma cláusula que determine que as plataformas digitais deveriam remunerar os profissionais que produzem conteúdo jornalístico difundido hoje gratuitamente na rede. Melhor: não existe almoço grátis. Tudo que lemos, clicamos, curtimos, assistimos, resultam em capturas de informações pessoais com fins publicitários e econômicos. A proposta significa que qualquer site, aplicativo ou rede social que publique notícias deve pagar uma taxa aos jornalistas, ou melhor, às empresas jornalísticas (a remuneração dos jornalistas, aqueles que escrevem, foi retirado do projeto) que produziram aquele material. A ideia é garantir que haja um incentivo para a produção de informações confiáveis e de alta qualidade, além de proteger os direitos autorais dos profissionais.
Para os sindicatos que representam os jornalistas, essa é uma reivindicação histórica da categoria. “Somos a favor do artigo 32, desde que os recursos sejam direcionados aos jornalistas. Os trabalhadores são a força de trabalho por trás do conteúdo jornalístico. Queremos ser ouvidos e atendidos”, pontua a FENAJ em nota oficial. A Federação acredita que a forma de garantir a sustentabilidade do ecossistema de produção de notícias é através da taxação das grandes plataformas digitais, como Google e Facebook. Essa medida pode ser direcionada ao Fundo Nacional de Apoio e Fomento ao Jornalismo (Funajor), que financiaria projetos de jornalismo independente e investigativo.
A Associação Nacional de Jornais (ANJ) se posicionou favorável ao Projeto de Lei. Segundo o presidente da entidade, Marcelo Rech, a proposta apresenta temas importantes como a regulamentação “entendemos que qualquer atividade empresarial deve ser responsável pela forma que faz dinheiro. Sempre consideramos que o projeto é de transparência e responsabilidade, mas ele também é de defesa da liberdade de expressão”, avalia Rech.
O presidente da ANJ “não identifica” nenhum perigo de censura no projeto que já não esteja contemplado na legislação brasileira, a qual já dispõe de leis que criminalizam determinados comportamentos, além de ser importante regulamentar a big techs que também são veículos de comunicação, em sua ótica. “Estranhamos é que veículos que se dizem que não são mídia não são veículos de comunicação, fazem editoriais e manifestações como se fossem veículos de comunicação. Telegram por exemplo, atuando como veículo de comunicação. Então nada mais correto que ele venha a ser regulado como veículos de comunicação”.
A Associação Nacional de Editores de Revistas, Aner, é outra entidade de classe que apoia o PL das Fake News como solução para o combate à desinformação. A ANER acredita que o projeto valoriza o jornalismo profissional e equilibra a responsabilização pelo conteúdo publicado. A ausência de remuneração pelo conteúdo jornalístico divulgado pelas big techs fragiliza o jornalismo e os controles internos das plataformas são insuficientes para conter a desinformação.
A Aner realiza debates e participa da Coalizão do Setor da Comunicação para os Desafios do PL e acredita que só o jornalismo profissional resolverá a questão das fake news. “O projeto preserva a liberdade de expressão e assegura a livre manifestação do pensamento, a inviolabilidade das comunicações, da privacidade e a proteção de dados pessoais. Um dos pontos previstos é a notificação de usuários por parte das redes sociais com informações sobre os motivos pelos quais determinado conteúdo publicado por eles foi suspenso, o que hoje não acontece”, acredita Rafael Soriano, presidente da ANER.
Debaixo dos panos
A queda de braço entre empresas de tecnologia, governo, e de certa forma, empresas de jornalismo, continua, mas esconde os verdadeiros interesses por trás disso tudo. A falta de regulamentação do que é feito na internet e redes sociais, desde o uso de dados particulares do usuário — particularmente regulamentado hoje, mas facilmente burlado — e disseminação de conteúdos, que sempre tem uma finalidade comercial, de lucro, em algum ponto, favorece quem espera levar vantagem manipulando dados e informações. Empresas comerciais podem ganhar muito dinheiro conhecendo melhor os hábitos dos cidadãos, e assim enviar propaganda normal, no caso de boas práticas, ou subliminar e manipuladora, para convencer alguém de comprar um mau produto ou serviço com base em informações falsas propagadas nos algoritimos. Políticos inescrupulosos também sabem que é possível ganhar eleições e se reeleger praticamente sem propostas. Nenhuma novidade aí. O problema é que as fake news e técnicas antiéticas de uso de dados de cidadãos foram amplamente utilizadas nos últimos anos para eleger governantes antidemocráticos. E aí está o perigo maior. E agora chegamos a um segundo degrau: o uso de inteligência artificial no jogo sujo da política ou dos negócios. A IA pode ser positiva ou negativa, depende do seu uso, claro, Essa questão ética precisa de respostas rápidas, pois não estamos falando de futuro e sim do presente. A União Europeia e EUA já começou a discutir isso com base em leis.
Uma luz no fim do túnel, que prova que não existe discurso único entre o empresariado envolvido no tema, foi a declaração de Sam Altman, executivo-chefe da OpenAI, criadora do polêmico ChatGPT, que pediu ao Congresso americano que regule a inteligência artificial, devido aos riscos envolvidos, como por exemplo, a manipulação das próximas eleições presidenciais, segundo ele. Que entregou: “A habilidade mais comum desses modelos[de IA] é de manipular, persuadir, fornecendo uma espécie de desinformação interativa individual”.
Também recentemente, em março, mais de mil pesquisadores e executivos do ramo da teoncnogia, incluindo Elon Musk pedindo uma pausa de seis meses no desenvolvimento de projetos de IA usados em chatbots. Em maio foi a vez do executivo Geofrey Hinton que, ao deixar o Google, falou dos riscos da tecnologia, entre eles, a possibilidade de ampliar a divisão social.