Profissão de risco

Jornalismo passa por grandes transformações tecnológicas antecipando um futuro que já chegou. Mas, ao mesmo tempo, convive com a barbárie medieval, com ameaças físicas e psicológicas contra profissionais, como Leonardo Sakamoto, nosso entrevistado

O processo de modernidade no jornalismo, muito atrelado à revolução tecnológica, que continuará marcando o século 21, rumo a um paraíso utópico das máquinas a serviço do homem e do bem comum, oferecendo rapidez e profundidade nas apurações e produção das notícias, convive ao mesmo tempo com o retrocesso da violência física, verbal e psicológica. que insiste em manter a atividade no mundo da pistolagem e da barbárie de séculos anteriores. A profissão de jornalismo, para profissionais com “J” maiúsculo, que cumpre sua função social de interesse público e fiscalização do poder, ainda é uma atividade de risco. Quem sente isso na pele é o jornalista Leonardo Sakamoto. Ele é um daqueles profissionais orgulho da profissão e inspiração para a nova geração de repórteres. Com ampla experiência em reportagens investigativas, tira verdades incômodas debaixo do tapete para reflexão da sociedade.  E por isso se transformou em alvo de extremistas ideológicos, criminosos, políticos e empresários corruptos e toda gama de pessoas que vivem e enriquecem à margem da lei. Foi ameaçado de morte e sofreu, e ainda sofre, todo tipo de ameaças verbais e escritas no mundo virtual e nas ruas, além de agressões físicas. Incluindo uma garrafada na cabeça. Por isso, sua atividade profissional no ambiente externo hoje requer cuidados e precauções. Nesta entrevista, ele fala do avanço da tecnologia no jornalismo, seus prós e contras, e o perfil do profissional de mídia, em profunda transformação para se adaptar aos tempos “modernos”. E ainda detalha seu trabalho hoje como articulista do UOL, comentarista na TV Cultura, fundador da ONG Repórter Brasil, e como professor universitário. Sua carreira profissional nas redações é fortalecida com uma consistente formação acadêmica. Graduação em jornalismo, mestrado e doutorado em Ciência Política. Aliás, política e direitos humanos são seus focos em suas reportagens, textos e comentários. Por isso, foi até natural ter sido um dos indicados para a 4ª e última edição do Troféu Audálio Dantas Indignação, Coragem e Esperança, do Instituto Vladmir Herzog, junto com outras instituições, que reconhece profissionais pela contribuição em defesa da democracia em meio às ameaças às instituições e violações de direitos [Além de Sakamoto foram premiados Bruno Paes Manso, Gregório Duvivier, Juliana Dal Piva, Rene Silva e Valmir Salaro]. Em 2017 também recebeu o prêmio Hero Acting to End Modern Slavery Award, do Departamento de Estado dos Estados Unidos, por sua luta contra a escravidão contemporânea. Em 2016, foi indicado ao prêmio Repórteres sem Fronteiras pela Liberdade de Imprensa, por conta de sua cobertura diária das violações aos direitos humanos e das ameaças e agressões que sofreu em decorrência de seu trabalho.

Pergunta até óbvia, mas necessária pela reflexão que propõe e que não quer calar: qual o impacto da tecnologia no jornalismo?

Sakamoto (foto de 2016/Wilipédia)

Sakamoto – Para o jornalismo, é necessário reconhecer que isso é uma realidade. E já está impactando a produção de comunicação como um todo; na publicidade, no jornalismo, e em outros campos. Tem desafios, pode trazer benefícios. Mas além desses benefícios, existe ao mesmo tempo uma série de problemas técnicos e éticos que teremos que sobreviver como profissão.

 

 

Estamos falando então de inteligência artificial, de ChatGPT…

Em minhas aulas na PUC-SP incluo o tema inteligência artificial. É um dos módulos de meu curso. Ferramentas digitais geradoras de texto e imagem e como usá-las no jornalismo. Como o ChatGPT, existe outras ferramentas que podem ser muito úteis para apuração de notícias, tratamento de fotos, etc. Ou seja, de uma maneira geral, as ferramentas generativas de texto e imagem podem ser úteis. Agora, o outro ponto tem uma discussão ética muito grande. Pois, além de poder ser utilizadas positivamente na produção editorial, podem ajudar a promover notícias falsas com maior rapidez e intensidade.

Precisa de uma eterna checagem então

Uma das características da desinformação é que seu conteúdo é identificável, pois geralmente é tosco, malfeito. Dá para descobrir lendo. Agora, usando ferramentas generativas, esse conteúdo sai cada vez mais perfeito; fica mais difícil identificar as mentiras e erros. Pode ajudar na manipulação da realidade. Essas tecnologias conseguem manipular imagens, colocar, por exemplo, como já foi feito, o presidente norteamericano Biden em situação em que nunca esteve… pode-se retocar imagens de forma perfeita que é impossível descobrir o que é verdade e o que não é.

Tudo isso inclui evidentemente, mais desemprego para a profissão….

O problema da desinformação em massa com essas tecnologias, além das questões óbvias de propagar mentiras e confundir a opinião pública, tem a situação real de substituição de mão de obra. Dizem os especialistas que devemos treinar novas competências….. que assim os empregos seriam mantidos… uma mentira! O trabalho nas redações poderá sim ser tocado por menos pessoas e mais rápido. Não estou falando das consequências inevitáveis na qualidade do produto final. A tecnologia, em qualquer setor, sempre traz demissões, isso é óbvio. Acontece que esse processo de mudanças tecnológicas, que assistimos há alguns anos, sempre aconteceu de maneira lenta. Dando tempo para as pessoas envolvidas se adaptarem de certa forma. Agora, é diferente, esse processo cai como uma bomba nas redações e fora dela. O efeito de demissões é imediato.  Não educamos a sociedade para se inserir nesse admirável mundo novo. Não adaptamos a formação das pessoas, o quadro universitário… A substituição de mão de obra sempre existiu. Caso dos cobradores de ônibus, por exemplo. Mas a velocidade agora é numa escala não-humana. Vamos ter corte de posições, desemprego.

Bom, isso é uma má notícia, mas uma constante no jornalismo, com o sem tecnologia. Que mais nessa visão apocalíptica?

Tem mais. Outra coisa é a tendência que estamos verificando no jornalismo hoje de entregar para a inteligência artificial determinadas informações. Pois ela se alimenta de informações que disponibilizamos de forma consciente ou não. Aspectos sigilosos e éticos entram aqui. E essa tecnologia começa a ser utilizada de forma sistemática pois tem aspectos de economia e rapidez. É possível, por exemplo, cobrir um jogo de futebol minuto a minuto quase sem interferência humana, e isso gera textos. É uma discussão exclusiva de custos. É mais barato. Além disso, no uso de textos e imagens dessas ferramentas, tem a questão de direitos autorais. É muitas vezes um roubo de estilo. O ChatGPT aprende na base de estímulos. Você pede um texto no estilo do Truman Capote e ele vai produzir algo semelhante. E quem remunera o autor copiado? Isso inclui fotógrafos. Direito autoral não é somente o plágio puro. Tem a questão do estilo simulado. A recente greve de roteiristas dos estúdios de Hollywood tratou disso. Assim, a tendência, no jornalismo, é usar a inteligência artificial e não se importar com o desenvolvimento do próprio texto. É só jogar no ChatGPT e pegar o resultado. Fazer um bom texto não é só escrever. Exige conexões mentais, interações lógicas para contextualizar a informação, pois sempre tem interações com outros assuntos, puxar ganchos…O processo de escrever é útil não apenas para o leitor que vê o resultado final, mas principalmente para os jornalistas que escrevem. São conexões mentais que você vai fazendo e que a máquina não faz. Como conexões afetivas….

Um outro ponto nesse processo de desinformação é que a indústria de fake news, mesmo após a eleição, não para. Estamos condenados a ficar vendo esse processo e reagir passivamente buscando confirmar ou não o tempo todo?

A questão da desinformação é que existe uma grande parcela da população que não quer se informar, quer apenas ler, ouvir ou assistir algo semelhante ao seu ponto de vista e que confirma isso, sendo verdade ou não. Não importa para esse grupo a questão da veracidade. Ninguém gosta de ser confrontado em suas convicções e isso vale para pessoas de direita e de esquerda. Queremos o chamado viés da confirmação. Num ambiente de redes sociais, o algoritmo irá nos entregar somente o que queremos ver. O que chamamos de bolha. Por enquanto, não temos como fugir disso. São necessárias leis, regulamentação, ter lideranças políticas que garantissem que nosso ambiente digital fosse mais saudável. Temos um ambiente não saudável, com lideranças políticas que tentam tornar a situação pior ainda do que já é. Aumentamos ainda mais as bolhas. A polarização faz parte da vida, mas a ultrapolarização acaba por considerar como inimigo as pessoas que pensam diferente. Isso é um perigo. Lideranças políticas controlam esses grupos, jogando uns contra os outros nas redes sociais.

Isso gera descrença na própria imprensa

Temos um processo de descrença na imprensa por conta do fato do leitor estar saturado num ambiente de muita informação, as vezes confundindo o trabalho da imprensa com essas fakes, e aí a própria imprensa está com dificuldade de se reinventar e aproveitar o contexto fazendo algo diferente. A imprensa não está conseguindo furar as bolhas. Existe o trabalho elogiável das agências de checagem de notícias, que fazem um trabalho civilizatório. O problema é que boa parte das pessoas, mesmo recebendo o desmentido, não acreditam nessa checagem e continuam acreditando nas mentiras. Estamos numa encruzilhada.

É o infoapocalipse, como dizia o Julian Assange, fundador do WikiLeaks, referindo-se ao uso ou desuso da informação para controle de determinada visão do estado.

O infoapocalipse, o apocalipse informacional, é quando a sociedade ou boa parte dela acredita nas mesmas coisas com bases equivocadas. A terra plana, e outras barbaridades, por exemplo. A solução é o seguinte: temos que regular urgentemente as redes sociais. As lideranças políticas devem atuar de forma mais responsável e os abusos devem ser punidos.

As iniciativas do que podemos chamar de imprensa independente, como o Repórter Brasil, que você fundou, e outras como a Agência Pública, de certa forma, fazendo um trabalho mais investigativo, ou investigando fatos que estão fugindo do radar da grande imprensa, pode ser uma saída no contra-ataque à desinformação?

Temos esse chamado jornalismo investigativo, independente, como o Repórter Brasil, que funciona há 22 anos, e outras iniciativas, mas o problema é o financiamento. Esse jornalismo mais independente é multifatorial. Boa parte dessas organizações não tem fins lucrativos. O Repórter Brasil também não tem lucro. Temos assinaturas e outras formas de apoio, parcerias com outras organizações dentro e fora do Brasil. Não é doação, mas pode ser utilizado como uma forma de começar uma organização desse tipo.

Vamos mudar para outro ponto importante no jornalismo que é a violência e ameaças contra nossa atividade profissional. Sempre teve isso, mas se intensificou nos quatro anos de um governo de ultradireita, que estimulou os ataques à imprensa quase como uma política de estado; mas, mesmo após uma mudança radical nas eleições de agora, o problema persiste.

O ambiente é de risco. E é, e sempre foi pior para o jornalista que atua no interior no Brasil. Quem mora no interior, longe dos grandes centros. Sempre foi mais perigoso, onde diversos jornalistas morreram, foram assassinados. Veja o caso do Dom Philips, que estava numa região remota.  O que está acontecendo agora, nesses últimos anos, é que profissionais que atuam nas capitais começaram a experimentar, a vivenciar essa violência, que já era uma realidade na vida que pessoas residentes no interior. Com as redes sociais a incitação do ódio quebrou barreiras físicas. O pessoal da cidade começou a sentir na pele o que é ser jornalista no interior, que sempre levou pancada, que sempre estiveram mais vulneráveis. Veja o caso do jornalista paraense. Lúcio Flávio Pinto, que há anos denuncia grileiros, e por isso enfrenta amaças e processos judiciais e sempre apanhou. Apanhou mesmo, na rua. Eu sempre recebi ameaças, comecei a ter uma situação de integridade física ameaçada mais complicada desde 2015. É um perigo de fato. Já apanhei na rua, fui cuspido, levei garrafada na cabeça, recebi ameaças de morte…. não só pela internet recebo essas ameaças, mas também pessoalmente. Tentaram invadir meu escritório mais de uma vez, ameaçaram minha família. No meu caso esse processo tem sido muito violento. Meu trabalho no Repórter Brasil  envolve denúncias ambientais e no UOL violações aos direitos humanos. Então, tenho tomado mais cuidado no âmbito pessoal.

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