O jornalismo continua sob ataque mesmo depois do calor das eleições. Agora, uma repórter e um fotógrafo de O Estado de S. Paulo foram atacados dentro de um condomínio de luxo no litoral norte. Os jornalistas Renata Cafardo e Tiago Queiroz (fotógrafo) estavam fazendo a cobertura dos deslizamentos e alagamentos que aconteceram na região devido ao excesso de chuvas, tragédia que até o momento causou 65 mortes, inúmeros desaparecidos e 1.172 desabrigados, quando foram cercados e ameaçados por moradores do condomínio de luxo Vila de Anoman, em Maresias, São Sebastião, que estava alagado, não tanto quanto as casas de pessoas mais humildes ali perto, e com carros debaixo d´água. Eles queriam que o fotógrafo apagasse as imagens. Um deles identificou-se como subsíndico. A nova agressão contra a imprensa fez com que entidades do setor como a Associação Nacional dos Jornais (ANJ), Federação Nacional dos Jornalistas (Fenaj), Associação Nacional dos Editores de Jornais e Revistas (ANER) e Associação Brasileira de Jornalismo Investigativo (Abraji) entre outras instituições, se manifestaram oficialmente contra a violência desnecessária, num atentado contra a verdadeira livre expressão e a democracia. Os dois jornalistas não foram agredidos fisicamente, por pouco, mas foram coagidos para não realizar a cobertura de utilidade pública, sob ameaças.
Intolerância ataca
É inegável que movimentos da direita, ou melhor, extrema-direita, insuflados pelo ex-presidente Bolsonaro, decretaram a imprensa como alvo de sua intolerância nos últimos quatro anos. Nesse período, houve aumento do número de jornalistas agredidos física e verbalmente nas ruas, por partidários do ex-presidente e até pelo chefe do executivo. Mesmo depois das eleições e da mudança de governo, parece que esse movimento violento vai continuar — e continuou mesmo pelo que vimos nos atos terroristas na Praça dos Três Poderes, em Brasília, no início do ano.
A pergunta é, o que incomoda essa gente intolerante que não respeita o exercício profissional do jornalismo e a liberdade de imprensa? O fotógrafo Tiago Queiroz, foi ameaçado no local, quando tentaram censurar seu trabalho, exigindo que apagasse as fotos. Qual seria o motivo? O fotógrafo não ficou lá para perguntar. Não se sabe o que se passa pela cabeça de um intolerante.
Podemos arriscar uma hipótese que aquele pequeno grupo de quatro moradores não queria que fotografassem o condomínio, talvez para não desvalorizar suas propriedades — O Vila de Anonan tem 30 casas, com 315 metros quadrados e piscina privativa, anunciadas para venda por R$ 3,5 milhões.
Ou até, outra suposição, pela aproximação solidária entre o atual presidente Lula e o governador Tarcísio de Freitas, de lados oposto na política, que estiveram juntos na região para tentar amenizar a tragédia.
Em grupos de extrema-direita no Whatsaap esse encontro foi bem criticado como sendo uma hipocrisia do PT para desmoralizar o chefe de governo que teve o apoio eleitoral do ex-presidente. Quem sabe, não queriam apagar a história, com o negacionismo de que não aconteceu nada. Até porque os agressores estavam ali para implicar com o exercício da liberdade de imprensa enquanto dezenas, até centenas de voluntários, estavam socorrendo as vítimas.
Tiago conta que estavam de carro sentido do Rio para Santos, em direção a Barra do Sahy, em São Sebastião, um dos locais mais atingidos pela tragédia dos deslizamentos, com mais mortos e desaparecidos que outros pontos da cidade. Passando por Maresias, com muitos pontos de bloqueios, um condomínio de alto padrão chamou a atenção, porque estava alagado por dentro. Com crachá de identificação, entrou no local, que estava aberto, e conversou com funcionários que tentavam drenar a água, os quais autorizaram sua entrada. Esses funcionários que disseram que ao lado, outro condomínio estava em pior situação.
Foi nesse outro condomínio que Tiago foi atacado. Uma agressão sem motivo. “Um grupo de uns cinco homens e uma mulher, vieram em minha direção e perguntaram quem eu era e o que eu estava fazendo ali. Ao me identificar como jornalista do Estadão, em serviço, cobrindo os deslizamentos e inundações, começaram a me xingar e gritar que eu era um esquerdista de um jornal comunista. Tentaram tirar a câmera do meu pescoço e exigiram que apagasse as fotos. Eu apaguei, mas havia um backup em outro cartão de memória. Com a situação tensa, saí do local e a minha colega Renata estava na rua conversando com outras pessoas. Esse mesmo grupo foi para cima dela, tentando roubar seu celular, ameaçando-a e xingando. A repórter foi empurrada e caiu numa poça de água”. Os agressores foram fotografados, e a polícia civil já identificou três deles.
Fato isolado que mostra sujeira debaixo do tapete na sociedade
Outros moradores socorreram os jornalistas, que foram embora, continuando seu trabalho. Foi um fato isolado, destaca Tiago, que confirma ter conversado com muitos moradores, em bairros mais pobres e em outros condomínios de luxo, sendo sempre, ele e a repórter, bem tratados. “Inclusive nos ofereceram água, item que chegou a ser superfaturado na região”.
Renata Cafardo — jornalista de destaque no Prêmio Especialistas da Negócios da Comunicação, no segmento de Educação — sentiu-se indignada e ultrajada pelos ataques covardes, principalmente porque “estávamos fazendo uma matéria de utilidade pública, denunciando o descaso de autoridades que pouco fazem para evitar essa tragédia anunciada” (institutos de meteorologia previram a tragédia com dois dias de antecedência). Ela destaca que as agressões só pararam e não foram piores porque populares interviram contra os agressores. O que revela outro fato importante nessas atitudes intolerantes contra a imprensa: são uma minoria, mas quando atacam conseguem o que até gostam: visibilidade na mídia, são aplaudidos em seus grupos digitais de alienados, o que acaba até incentivando outros agressores, que no fundo, tem um mesmo aspecto ideológico e estão mais raivosos porque perderam uma eleição.
Em contato com o jornal, os jornalistas foram orientados a elaborar um boletim de ocorrência, mas Tiago e Renata acharam que iam perder muito tempo, o que comprometeria a cobertura num momento crítico da tragédia — o BO foi feito depois e a Polícia Civil já identificou três dos agressores. Presenciaram e registraram o quadro de destruição de casas, estradas e viram corpos de pessoas mortas. “A minha sensação ali foi semelhante a que passei em 2010 quando cobri o terremoto do Taiti. Fiquei uma semana lá testemunhando a destruição. O que vi no litoral norte foi muito parecido, um cenário de guerra com lama por toda parte”.
“A maior agressão para um repórter fotográfico é ser coagido a apagar as próprias fotos, isso é pior do que levar uma porrada”
Por outro lado, Tiago testemunhou a solidariedade de muita gente, jovens que vieram de outras regiões para ajudar nos resgates, como voluntários. Pessoas sem experiência de alguém da defesa civil ou do corpo de bombeiros, mas com boa vontade e disposição solidária, levando água e alimento e ajudando a encontrar pessoas ainda soterradas nos escombros e na lama.
“Vimos um casal jovem, com um bebê, desolados, no meio da lama, indo embora do local. Eram turistas, que haviam alugado uma casa que foi alagada, em Boiçucanga. Perderam o carro, e buscavam sair dali pelo mar, com um barco. Só com a roupa do corpo”. Foi uma das historias comoventes que os jornalistas testemunharam.
“Com a agressão psicológica ficamos muito nervosos mas não deixamos de fazer nosso trabalho, cumprir a pauta e testemunhas os fatos”, conta Tiago, que destaca: “A maior agressão para um repórter fotográfico é ser coagido a apagar as próprias fotos, isso é pior do que levar uma porrada”.
Já os problemas com inundações e deslizamentos no Brasil não são acontecimentos isolados. Em dezembro do ano passado, as chuvas mataram 27 pessoas com mais de 30 mil desabrigados no sul da Bahia. O presidente na época, Bolsonaro, disse que não iria interromper suas férias para ir até o local dar um apoio aos desabrigados. Ao contrário do que o atual presidente Lula, que esteve no litoral sul se reuniu com o governador e com o prefeito de São Sebastião, ambos antigos desafetos políticos. De acordo com o IBGE, existem 8,2 milhões de brasileiros morando em áreas sujeitas a deslizamentos. No litoral norte, dinheiro não é problema na prevenção de desastres naturais, até porque Ubatuba, São Sebastião, Ilha Bela e Caraguatatuba receberam R$ 632 milhões em royalties do petróleo ano passado, números divulgado pelos grandes jornais em tom de protesto. A imprensa faz sua parte denunciando o antes, durante e depois, As autoridades, só agem no durante. Quando agem.
Editorial do Estadão condena a violência contra seus jornalistas
Em editorial sobre o episódio, o jornal O Estado de S. Paulo declarou: “O condomínio dos intolerantes
até convive por alguns dias com a lama que, sem ser convidada, veio se alojar na varanda depois da chuvarada,
mas não convive com a imprensa livre nem sequer por um minuto. Para essa turma, a verificação dos fatos e o debate público só são aceitáveis quando ficam “do meu portão para fora”. O editorial lembrou ainda que o “bolsonarismo”, ideologia que inflamou a intolerância, o ataque às instituições democráticas e violência política no Brasil, “está aí praticamente intacto em sua bestialidade. Está em São Sebastião, está em Roraima, está no aumento do número de pessoas armadas no País”. E finaliza: “Tão urgente quanto combater e prevenir a calamidade natural é combater e prevenir a hecatombe civilizacional que nos atinge. Se descuidarmos, o
que tivemos de pior entre 2019 e 2022 voltará em doses mais altas”.
Aos poucos a imprensa profissional vai destrinchando a sequência de atos e omissões que levaram a esse estado de coisas. O prefeito de S. Sebastião, Felipe Augusto (PSDB) culpa empresários poderosos, moradores dos condomínios de luxo na região, que impediram a construção de 220 moradias populares para 500 pessoas, em 2020, para remover as famílias das áreas de risco. e foi a prefeitura que suspendeu o contrato em parceria com a CDHU do Governo do Estado. De fato, moradores ricos fizeram um abaixo assinado com 500 nomes protestando contra moradias populares perto de suas mansões. E um edital foi feito para a construção das casas, mas o dinheiro não veio do financiamento prometido pela Caixa Econômica, segundo apuraram alguns jornalistas analisando os diários oficiais da época. Alguém melou o processo. Em entrevista à rádio Band News, a presidente atual da associação de moradores, a Somar, que engloba moradores do bairro, disse que não seria possível construir casas populares ao lado dos condomínios de luxo “porque não foi previsto no edital obras de infraestrutura”, como água e esgoto, o que não é verdade. Questionada pela reportagem se fossem feitas obras de infraestrutura para abrigar essa população pobre, se os condomínios não iriam se opor, e ela respondeu que, mesmo assim, “é muita casa, um número exagerado de unidades para pessoas que não teriam emprego local”.
Para a colunista Mônica Bergamo, colunista da Folha de S. Paulo, Eliseu Arantes, que na época da construção das casas populares presidia a Somar, declarou que “não é verdade que a associação se opôs ao projeto”. Ele que é dono do Supermercado Bom Gosto, confirmou a versão que não havia saneamento básico para o conjunto habitacional e mais ainda, que as casas “seriam construídas numa área de charco”. E complementou dizendo que a associação não contempla só moradores ricos, e inclui também gente mais humilde.
O jornal O Globo destrinchou o fio da meada dessa história mal contada. Publicou um vídeo de janeiro de 2020 mostrando uma reunião da associação de Maresias. Nele, o ex-secretário de comunicação o governo Bolsonaro, Fabio Wajngarten, que tem casa no local, diz: “Enquanto eu estiver em Brasília usem a minha posição lá. Essa história da habitação, das casas [populares] o Eliseu [Eliseu Arantes, então presidente da Associação] me endereçou há uma semana…. Eu liguei para o presidente da Caixa [Pedro Guimarães, que se envolveu num escândalo sexual com funcionárias]…”. As boas ligações do secretário deram certo. No mesmo dia a Caixa negou o pedido de construção das 400 casas populares.
ANJ e Fenaj criticam o mais novo ataque à imprensa
Para o jornalista Marcelo Rech, presidente-executivo da ANJ, “a agressão aos profissionais de O Estado de S. Paulo representa uma agressão a toda a sociedade. Quando um jornalista é atacado, são os olhos e ouvidos da comunidade que sofrem o ataque. Lamentavelmente, uma minoria extremista, estimulada por discursos radicais, não tem compreensão sobre o papel da imprensa e da liberdade de imprensa. No caso, o episódio é ainda mais lamentável porque os profissionais estavam atuando em uma calamidade pública, colaborando para informar a sociedade e formar uma corrente de solidariedade com as vítimas da enxurrada”.
Regina Bucco, diretora-executiva da Associação Nacional dos Editores de Revistas (ANER) diz que a entidade “repudia as agressões de que foram vítimas o repórter fotográfico Tiago Queiroz e a repórter Renata Cafardo, do jornal O Estado de S. Paulo, durante a cobertura das chuvas que atingiram o litoral norte de São Paulo, no dia 21, no condomínio de luxo Vila de Anoman, em Maresias, São Sebastião.
É um absurdo que jornalistas estejam sendo agredidos ao exercerem a sua função básica, que é a apuração dos fatos para informar a população. É como brigar com um agente de saúde porque está aplicando uma vacina ou com um gari porque ele está recolhendo o lixo”.
“Agredir fisicamente”, continua, “com palavras chulas, tentar roubar os instrumentos de trabalho não são, definitivamente, comportamentos de pessoas equilibradas e comprometidas com a democracia e a liberdade de imprensa. É necessário apurar corretamente as responsabilidades, estimular a educação midiática e fazer cumprir a lei, para que situações assim não voltem a acontecer”.
Já a nova presidente da Fenaj, a jornalista Samira de Castro, em nome da instituição diz prestar toda a solidariedade aos jornalistas do Estadão “covardemente agredidos na cidade de Maresias, enquanto realizavam a cobertura do desastre que atingiu o litoral norte de São Paulo”.
Em nota, o Sindicato dos Jornalistas de São Paulo (SJSP) e a FENAJ exigem que as autoridades competentes realizem a apuração desse ataque e responsabilizem os autores dessa tentativa de cercear o livre trabalho da imprensa.
“Lutar contra as agressões a jornalistas deve ser uma tarefa permanente, assim como o combate ao ódio semeado nos últimos anos em nosso país”, complementa Samira, lembrando o contexto, “um momento de grande dor, os familiares das vítimas possam encontrar conforto e serenidade. E que os profissionais de imprensa possam realizar esta dificílima cobertura sem o receio de serem atacados de maneira covarde por aqueles que desprezam o luto de uma tragédia”.
Samira diz ainda que a Fenaj continua chamando a atenção e denunciando essa onda de violência contra os trabalhadores da mídia. Destaca que em 2022 ocorreu pelo menos uma agressão por dia contra jornalistas, e em 2023 essa violência aumentou à partir da cobertura da invasão das sedes dos três poderes em Brasília e da desocupação dos acampamentos de manifestantes pró-ditadura na frente dos quartéis. “Entre os dias 8 e 11 de janeiro já contabilizamos 45 casos de agressões à jornalistas, um número alarmante”.
Um dossiê com esses dados já foi entregue ao Observatório Nacional da Violência contra Jornalistas, no Ministério da Justiça. O ministro Flávio Dino disse que iria repassar esse caso de agressão para o Observatório. “A gente espera que esses responsáveis por essa violência sejam punidos na forma da lei. A impunidade tem sido um combustível para essa crescente onda de violência no Brasil”, desabara a líder da Fenaj.
Em nota, a Associação Brasileira de Jornalismo Investigativo (Abraji) repudiou “com veemência as agressões”. “É inadmissível que profissionais de imprensa sejam atacados por exercerem seu papel de levar para a sociedade informações de interesse público. A Abraji se solidariza com os jornalistas agredidos e exorta as autoridades locais a identificar e responsabilizar os agressores”, segundo a nota oficial.