Dia da Consciência Negra e sua reflexão no jornalismo

Pesquisas mostram que o negro ainda é minoria no jornalismo e maioria nas reportagens policiais

O Brasil celebra hoje o Dia da Consciência Negra ou Dia Nacional de Zumbi, comemorado em 20 de novembro. consolida-se na esfera pública brasileira como uma plataforma incontornável para a discussão sobre justiça social e a reparação histórica. Instituída em homenagem a Zumbi dos Palmares, líder do Quilombo dos Palmares e símbolo máximo da resistência à escravidão, a data, além de celebrar o vasto legado cultural da população negra, lança luz sobre as profundas desigualdades estruturais que desafiam o conceito de democracia racial. Neste contexto, o 20 de novembro se torna um catalisador para a reavaliação de estruturas sociais e o fomento a debates fundamentais.

O ano de 2024 foi o primeiro em que 20 de novembro, Dia Nacional de Zumbi e da Consciência Negra, foi celebrado como feriado no Brasil. A data, que já era feriado em seis estados da Federação (nenhum deles no Sul) e em 1.260 municípios, só alçou a condição de ser incluída oficialmente no calendário nacional em dezembro do ano passado, quando o presidente Luiz Inácio Lula da Silva sancionou a lei 14.759/2023. Ela havia sido instituída em 2011, no então governo Dilma Rousseff, mas 13 anos depois, precisou de uma nova proposição legislativa para ser reconhecida nacionalmente – e isso diz muito sobre o Brasil.

O Estatuto da Igualdade Racial foi instituído no Brasil em 2010, mas no campo jornalístico, entidades do movimento sindical como a Fenaj e os sindicatos de jornalistas já tratam da questão desde 2001, quando foi criada a primeira Comissão de Jornalistas pela Igualdade Racial (Cojira), pelo Sindicato dos Jornalistas Profissionais de São Paulo. Em 2008, foi estabelecida a Comissão Nacional de Jornalistas pela Igualdade Racial (Conajira) pela Fenaj, congregando 11 núcleos ou comissões com propósito semelhante em todo o país.

Para a Comissão Nacional de Jornalistas pela Igualdade Racial (CONAJIRA), da Federação Nacional dos Jornalistas (FENAJ), a data transcende o caráter comemorativo para se afirmar como marco de resistência, reflexão e luta antirracista. Reforça o compromisso do jornalismo brasileiro com a preservação da memória histórica e o combate às desigualdades raciais.

Quem foi Zumbi

Zumbi dos Palmares, líder quilombola assassinado em 20 de novembro de 1695, e essa data comemorativa foi proposta pelo poeta e professor gaúcho Oliveira Silveira, em 1971, como contraposição ao 13 de maio. Enquanto esta última celebra uma abolição incompleta, que lançou milhões de pessoas negras à marginalização, o 20 de novembro simboliza a resistência ativa, a consciência crítica e a luta por dignidade.

Essa consciência histórica resultou em conquistas fundamentais: a Lei 7.716/1989 criminalizou o racismo; a Lei 9.459/1997 ampliou as proteções; a Lei 10.639/2003 tornou obrigatório o ensino de história afro-brasileira; as políticas de cotas democratizaram o acesso ao ensino superior; e a decisão do STF de 2021 equiparou injúria racial ao crime de racismo, tornando-a imprescritível e inafiançável.

Desafios

No entanto, os desafios persistem, segundo a Fenaj, Negros e negras representam 78% das vítimas de homicídio, enfrentam desemprego superior e sub-representação nos espaços de poder. O apagamento simbólico da população negra na mídia perpetua estereótipos e invisibiliza trajetórias de sucesso.

“O jornalismo tem responsabilidade social inegável nesse contexto”, segundo nota da Fenaj e do CONAJIRA. “Cabe aos profissionais da comunicação promover coberturas que valorizem a diversidade, questionem estruturas racistas e ampliem a representatividade negra nas redações e pautas. Preservar a memória de Zumbi, de Oliveira Silveira e de milhões de anônimos que resistem diariamente é dever ético da categoria”.

Negros no Jornal Nacional

Pesquisa da professora Ana Maria da Conceição, do Campus de Imperatriz da Universidade Federal do Maranhão, analisou a representatividade de pessoas negras como fontes oficiais, especializadas e primárias nas reportagens do telejornal da Rede Globo. Foi realizada uma abordagem quantitativa e qualitativa, além de observação de conteúdo das edições entre 1° e 31 de agosto de 2024. Foram observados critérios como: raça, gênero e classificação da fonte – ao total foram revisados 27 folhetins.

Os dados revelaram que fontes negras ainda aparecem em baixa proporção no Jornal Nacional, fontes brancas são maioria, principalmente entre oficiais e especialistas, pessoas negras surgem com mais frequência em pautas esportivas e de questões raciais propriamente. Há quase ausência de especialistas negros em áreas como política, economia, meio ambiente e saúde, o tempo de fala de fontes negras é inferior ao de fontes brancas.

Os resultados apontam que, mesmo com avanços pontuais na representatividade, o telejornal ainda reproduz desigualdades estruturais, reforçando a centralidade da branquitude e reduzindo o acesso de pessoas negras ao lugar de discussão. A pesquisa da discente demonstra a importância de diálogos abertos e contínuos sobre igualdade racial na atualidade, pois ainda existem desafios a serem superados.

Neste cenário, Ana Maria da Conceição, destaca que a desigualdade não está apenas no conteúdo dos telejornais, mas em quem tem legitimidade para falar. “Ao analisar quem pode falar e ser ouvido no principal telejornal do país, percebemos que a desigualdade não está apenas no que é dito, mas também em quem pode dizer. A pesquisa reforça que a representatividade não deve se limitar à presença na tela, mas ao direito de ocupar espaços de autoridade e credibilidade. Quando pessoas negras são silenciadas nos telejornais, toda a sociedade perde”, enfatiza.

A orientadora do trabalho e professora do curso de Comunicação Social – Jornalismo da UFMA Imperatriz, Leila Sousa, salienta que o jornalismo ainda privilegia vozes brancas e retrata pessoas negras de forma estigmatizada, reproduzindo desigualdades que, segundo ela, precisam ser combatidas. “É discrepante o tempo de tela entre negros e brancos e fica evidente o papel das instituições na reprodução do racismo. Privilegiar a voz de pessoas brancas como fontes oficiais e legítimas e situar pessoas negras majoritariamente em pautas sobre violência e vulnerabilidades, é uma prática ainda muito comum e rotineira no jornalismo brasileiro e que precisa ser denunciada e erradicada”.

Representatividade

Censo do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) de 2022 revelou que, pela primeira vez desde 1991, a população autodeclarada parda do país superou a branca: 45,3% afirmaram ser pardos, 43,5% brancos, 10,2% pretos, 0,8% indígenas e 0,4% amarelos. Reeditando a análise realizada pelas pesquisadoras Andressa Kikuti Dancosky e Janara Nicoletti em 2019, tomando-se o resultado do Censo de 2022 em correlação com os dados da pesquisa Perfil do Jornalista Brasileiro 2021, nota-se que, apesar de uma perceptível melhora nos índices, o percentual de jornalistas negros no país, de 29,9% ainda está longe de ser representativo da parcela da população que se autodeclara como negra, de 55,5%.

“A mídia ainda trata o negro no sistema escravocrata”, avalia Mariângela Frasão, do Fórum de Mulheres Negras do Estado de São Paulo. “O negro permanece sendo associado a uma imagem de subserviência, a uma imagem do negro com uma atitude menor, do negro que não pensa, do negro que não tem ideologia”.

Mara Cardoso de Lima, do movimento Hip Hop, identifica nos últimos anos uma tentativa de inserção dos negros na mídia, principalmente nos meios televisivos, mas afirma que “os personagens negros cumprem um papel de mostrar que é possível vencer na vida, ainda que a imensa maioria continue na miséria e com condições de trabalho precárias”.

“Os grandes jornais não têm mostrado de forma democrática os problemas e a luta do povo negro no Brasil”, aponta Julião Vieira, da União de Negros pela Igualdade (Unegro). Ele cita, por exemplo, a ausência de matérias que retratem as dificuldades da juventude negra, a grande vítima de assassinatos. Vieira também aponta outra face da exclusão: “O movimento tem profissionais formados que poderiam pautar estas questões, mas estes não conseguem ingressar na grande imprensa.” Pesquisas recentes confirmam: nas televisões, apenas 5,5% de apresentadores e profissionais que aparecem no vídeo são negros.

Éber Fagundes, coordenador da sede nacional do Educafro, compreende como central a ausência de negros e negras como protagonistas na cultura e na produção jornalística. Segundo ele, a posição do movimento é de que para se avançar na representação do negro na mídia é necessária a aprovação do Estatuto da Igualdade Racial, reivindicação histórica do movimento negro e uma das principais pautas da 4ª Marcha da Consciência Negra, que ocorreu neste dia 20 de novembro em diversas cidades brasileiras. “Com a aprovação do Estatuto, nós teremos um percentual representativo de negros no mercado de trabalho e, conseqüentemente, aumentaremos sua representação na mídia.”

Mais Pesquisa

No mercado de trabalho, assim como na formação superior, as barreiras ainda se colocam de forma concreta de acordo com a professora e pesquisadora  Claudia Nonato, da USP, ao investigar dados sobre as trajetórias de jornalistas negros a partir do Perfil do Jornalista Brasileiro 2021. Foi identificado que, além de terem carreiras curtas e marcadas pela alta rotatividade, com trocas constantes de vínculos empregatícios – 52,7% tiveram entre dois e cinco empregos ao longo da vida profissional, enquanto 22,3% relataram ter de seis a 10 vínculos – 31,6% dos jornalistas negros são afetados diretamente pela ‘pejotização’. Sendo essa caracterizada por formas de trabalho com contrato precário, sem estabilidade, renda assegurada e acesso a direitos trabalhistas básicos, como férias e 13º salário.

Ainda sobre as desigualdades que travam o acesso e permanência de negras e negros no jornalismo, a pesquisa revela que 43% das pessoas negras trabalham em média mais de nove horas por dia. Com uma remuneração mensal que atinge no máximo R$ 5,5 mil para 70% dos profissionais negros, apenas um terço desses jornalistas afirma que o salário mensal é suficiente para arcar com as despesas básicas. Dessa forma, mais da metade das pessoas negras que atuam como jornalistas precisa recorrer a fontes de renda adicionais para se manter.

Outras constatações expõem ainda que a maioria dos jornalistas negros ocupa funções operacionais e não de chefia; quase 70% sentem-se cotidianamente estressados; 31,5% já sofreram ataques ou ameaças virtuais em decorrência do trabalho, sendo que boa parte dos indicadores piora consideravelmente quando se aplica o recorte de gênero. Um retrato claro da mídia e da sociedade brasileiras, lamentavelmente.

Conteúdo RelacionadoArtigos

Portal da Comunicação

FAÇA LOGIN ABAIXO

Recupere sua Senha

Por favor, insira seu usuário ou email