O jornalismo em transformação

A tecnologia impõe mudanças tecnológicas e com elas, desafios, riscos, mas também oportunidades para quem estiver preparado

As mudanças tecnológicas transformam as operações empresariais, criam novos modelos de negócios, e promovem uma dança das cadeiras, eliminando do cenário quem se apega ao passado e enaltecendo novos players — empresas que rapidamente entendem as novas regras do jogo, com equipes que se preparam com novas capacitações. Com o jornalismo não é diferente. Estamos no meio do furacão, com muitas novidades, principalmente no campo virtual. Já não é mais a questão se o digital engolirá o impresso. Isso já foi superado, com o digital passando a perna em quem está apenas no papel. Novas mídias desafiam o rádio e a TV, com os streamings. Mas aí tem mais oportunidades que riscos.

O nome do jogo agora é inteligência artificial (IA), e engloba muitas frentes. Algumas foram promessas e não decolaram (ainda), como o Metaverso. Mas tem muita coisa acontecendo e muitas empresas prometem investir pesado na área. Pesquisa internacional da Bain & Company apontou que a inteligência artificial é uma das prioridades para companhias de diversos setores nos próximos anos. Elas estimam investir R$ 1,3 trilhão nesse mercado. A McKinsey vai mais longe e estima que somente a IA generativa poderá movimentar algo entre US$ 2,6 trilhões e US$ 4,4 trilhões por ano. No Brasil, as empesas prometem desembolsar US$ 1 bilhão este ano com IA, de acordo com levantamento da Consultoria IDC.

Outro estudo, conduzido pela Oracle em 17 países, incluindo o Brasil,  aponta o estudo, 70% os líderes empresariais do mundo estão usando a IA para tomar decisões — 64% em nosso país. Uso de dados é apontado como um trunfo para tornar uma empresa bem-sucedida.

Inteligência artificial no jornalismo

Não é mais novidade que a inteligência artificial veio para ficar, automatizar processos, e facilitar a apuração de conteúdo. Com a crescente evolução tecnológica, as empresas de mídia estão buscando maneiras mais eficientes e rápidas de se conectarem com o público, encurtar processos e até mesmo revolucionar a maneira como as informações são divulgadas e as AIs se mostram uma ferramenta poderosa nesse sentido.

Nas empresas jornalísticas o uso de dados tem sido amplamente utilizado não só na redação, para apurar conteúdo mais investigativo, como na área comercial, para entender melhor quem é o cliente e os potenciais assinantes.

Aí chegaram os aplicativos generativos, uma espécie de chatbots, que prometem buscas mais sofisticadas na web.  Mais do que responder perguntas e apontar links, como os antigos buscadores, como o Google, esse novo sistema promete (e está entregando, com muitos defeitos ainda) textos completos. Suspeita de plágio à vista. Muita gente esperneou, com razão, a respeito dos direitos atuais.

Por outro lado, alguns gestores de veículos impressos e digitais (principalmente de pequeno porte) ficaram entusiasmados com a possibilidade de cortar custos na redação colocando as máquinas para substituir o trabalho dos jornalistas. Estimativa muito apressada.

Estamos falando do ChatGPT (da OpenAI) e do Bard (do Google), os primeiros a se aventurar na área. Agora foi lançado o WeChat, da chinesa Tencente, apenas para empresas. Grandes modelos de linguagem (LLM) alimentam tais plataformas de IA. A fonte é o enorme material disponível no ambiente web, mas também é possível adicionar ao sistema conteúdos diversos, mas que, evidentemente, devem estar armazenados em alguma nuvem.

Bucci, da USP: “Ainda é cedo para uma avaliação de prós e contra das tecnologias baseadas em IA”

Para o jornalista e professor da USP Eugênio Bucci, ainda é cedo para uma avaliação de prós e contra das tecnologias baseadas em IA, que desempenham sim tarefas básicas; entretanto, se não forem bem compreendidas podem matar a essência do jornalismo e desumanizar a profissão. Ele se refere, principalmente, ao ChatGPT quando fala em IA. Bucci é um profissional experiente e tem estudado a questão. Foi presidente da Radiobrás de 2003 a 2007 e integrou o Conselho Curador da Fundação Padre Anchieta (TV Cultura de São Paulo) de 2007 a 2010. Na Editora Abril, foi diretor de redação das revistas mensais Superinteressante e Quatro Rodas, e secretário editorial. Atualmente é professor titular da Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo, onde dá aulas de graduação e pós-graduação e  integra o Conselho Curador da Fundação Padre Anchieta, o Conselho Deliberativo do Instituto Vladimir Herzog e o Conselho Consultivo da Aberje – Associação Brasileira de Comunicação Empresarial – entre outros.

Lüdtke,do Projor: “Sabendo usar, o jornalismo pode transferir para IA tarefas recorrentes e que podem ser padronizadas e automatizadas”

Também adepto a ideia de que é cedo para elogios e críticas ao ChatGPT e outras tecnologias semelhantes, como o Bard, Sérgio Lüdtke, editor-chefe do Projeto Comprova e presidente do Projor – Instituto para o Desenvolvimento do Jornalismo, avalia que “ainda não conseguimos medir os impactos, mas há muitos temores do uso dessas tecnologias para produzir desinformação”. Entretanto, faz um alerta: “A checagem de fatos sempre teve como propósito aumentar o custo da desinformação, mas essas tecnologias têm potencial para reduzir isso e, pior, aumentar o custo da verificação. Historicamente, muitas das tecnologias que surgiram para melhorar a comunicação entre as pessoas também foram utilizadas para desinformar. Isso aconteceu com a imprensa, com o rádio e com a TV, mas as pessoas se habituaram a usar essas ferramentas e o jornalismo se apropriou delas para seu uso. Isso tudo muda com o surgimento do digital”.

“A IA não consegue fazer uma boa entrevista, mas consegue conectar dados sobre vários tipos de informações, como eventos esportivos, trânsito, cotações do mercado, artes e espetáculos, entre outros”, pondera Bucci. Além disso, complementa, “as máquinas conseguem também coordenar textos de enunciados, hierarquizar num primeiro nível o que deve ter mais destaque e isso tudo pode trazer desemprego para as redações”. A grande pergunta proposta por Bucci é: “O jornalismo é um serviço mecânico e automatizável?”.

“A Inteligência Artificial no jornalismo pode ajudar nas tarefas que são banais e que podem ser feitas por uma máquina mais rapidamente”, opina o professor Carlos Eduardo Lins da Silva, tentando responder à questão proposta por Bucci. “Assim, os jornalistas se dedicariam ao que é mais importante: a apuração e comprovação dos fatos”. Mas, alerta, “o perigo é substituir o jornalista para escrever textos”.

Carlos Eduardo Lins da Silva do Insper
Foto: Divulgação Germano Lüders

Entre as rotinas que a IA pode ajudar, ele aponta a transcrições longas de conferências de imprensa, discursos, entre outras semelhantes, com o cuidado de que “a interpretação, análise de fatos, a máquina ainda não consegue fazer e quando tenta fazer surgem muitos erros”. Ou seja, pode ser um meio auxiliar nas redações.

Talvez no futuro surja um avanço nessas restrições. E hoje os cuidados estão sendo redobrados: “A maior parte das empresas jornalísticas estão tomando medidas para que esses erros não aconteçam”, quando utiliza a tecnologia no trabalho da redação, destaca o professor. Imagens, por exemplo, não estão sendo utilizadas se passaram por alguma alteração ou criação de IA. “Isso é um perigo, o resultado pode ser enganador”.

Bucci admite que existem erros nesses aplicativos, mas que devem ser relativizados antes de condenar e descartar a tecnologia. “Precisamos ir com calma, porque é algo novo e a máquina [referindo-se ao ChatGPT] irá superar esses erros”. Isso porque os desenvolvedores vão aprendendo com os erros e programando melhorias com níveis melhores de acertos.

Outro problema no uso do ChatGPT, especificamente, é a questão dos direitos autorais, lembra Lins da Silva: “A  IA está sendo treinada com conteúdo feito por jornalistas, sem pagar nada por isso aos autores”. Existe um movimento na Europa e nos EUA, complementa, para exigir que empresas que utilizam ferramentas como o ChatGPT sejam mais transparentes e revelem como e onde são captadas as fontes dos resultados. Falta, portanto, sugere Lins da Silva, regulamentações estatais, das quais as big techs fogem como o diabo foge da cruz.

Fim dos empregos?

Quanto à eliminação de empregos, o assunto ainda é polêmico. Segundo a Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico, a IA deve acabar com 27% dos empregos no mundo. O Fórum Econômico Mundial prevê que até 2027 serão criadas 69 milhões de vagas e eliminadas 83 milhões.

Algumas redações já estão usando o ChatGPT, de forma limitada, para produzir pequenos textos. Principalmente jornais de interior e publicações menores.  O Bild, por exemplo, tabloide mais vendido na Europa, e o Politico, entre outros títulos importantes, anunciou o corte de 200 vagas na para economizar € 200 milhões, atribuindo parte das demissões à oportunidade de utilizar máquinas para tarefas hoje executadas por humanos. Bucci é cuidadoso na avaliação do desemprego nas redações, que deve acontecer de alguma forma. Mas ainda não se sabe o nível dessa mudança. Outros postos podem ser criados no jornalismo, como profissionais especializados em uso de dados. “Atividades mais mecânicas e repetitivas podem sim ser melhor executadas pela IA”, repete Bucci. E ele volta à questão de avaliar se o jornalismo é uma atividade mecânica.

A tentação é grande, mas trata-se, neste momento, de economizar, ter produtividade ao custo da qualidade da informação, e banalizar a atividade jornalística, como mostra iniciativa de alguns veículos de comunicação (pequenos, diga-se de passagem), de utilizar o ChatGPT para produzir textos.  Os resultados têm sido desastrosos, cheios de erros, como atestam várias reportagens que inundam os meios digitais e a mídia impressa mostrando inconsistência nos resultados, o que os especialistas chamam de “alucinação das máquinas“. E que pode alimentar ainda mais as fake news.

Grandes veículos de imprensa estão mais cuidadosos com essa tecnologia, que é utilizada no momento, em fase de testes, para produzir apenas roteiros de pauta e auxiliar nas pesquisas, sempre com checagem final de um profissional (humano).

Para Carlos Eduardo Lins da Silva, a supervisão humana, nos casos acima, “é essencial e já existe consenso sobre isso nas principais e maiores redações e entidades e associações de jornalismo de todo o mundo”. Sua opinião tem o peso de sua experiência. Doutor em Comunicação, atual professor no Insper, autor de vários livros, foi diretor-adjunto na Folha de S. Paulo — onde protagonizou uma reforma editorial interna e introduziu o Manual de Redação – e também no Valor Econômico. Foi ombudsman da Folha e correspondente em Washington.

Qualidade duvidosa

Silveira, de O POVO (CE): “O compromisso com a audiência vai influenciar na produção de informação

A respeito da qualidade final dos textos, das pesquisas efetuadas com IA, Bucci lembra que a tecnologia já é hoje amplamente utilizada na publicidade, sem que as pessoas reclamem dos resultados. “Depende da capacidade de julgamento dos públicos”, explica. “O que eu posso ver como perda de qualidade pode ser festejado por outros grupos de pessoas”, complementa. Por isso “é difícil ter um prognóstico conclusivo”, finaliza, deixando as respostas mais precisas para um futuro próximo, pois tudo ainda é extremamente novo e muita tecnologia ainda está em fase de testes.

Rafael Silveira, head de novos negócios do O Povo (CE) e coordenador do Comitê de Estratégias Digitais da ANJ, afirma que a AI não é novidade em grandes corporações: “A grande sacada hoje é que os produtores podem fazer sozinhos, mudando a regra do jogo. A questão é que o compromisso com a audiência vai influenciar na produção de informação”.

Felipe Payão, editor do Tech Mundo ,acredita que a AI não substitui o texto autoral; ela consegue produzir matérias laudatórias, sem checagem de dados. “Vemos cada vez mais ela gerando matérias básicas, mas vai demorar muito tempo para conseguir alcançar o olhar do jornalismo na busca e investigação”, acrescenta.

Payão, do Tech Mundo: “O profissional precisa usar a ferramenta como complemento, não como substituição”

Payão relata que a ferramenta já é utilizada no TecMundo para alinhar tópicos e perspectivas de pautas, mas não substitui o olhar do jornalista na produção da matéria e da pauta: “O profissional precisa usar a ferramenta como complemento, não como substituição”.

Lüdtke, a respeito do uso dessas novas tecnologias nas redações, diz ser “fundamental que os jornalistas conheçam e se capacitem para entendê-las e usá-las. Sabendo usar, o jornalismo pode transferir para IA tarefas recorrentes e que podem ser padronizadas e automatizadas, e pode usar inúmeras ferramentas desde a transcrição de áudios até a descrição de imagens para melhorar a acessibilidade dos conteúdos publicado”. Essas tecnologias “realizam tarefas que podem ser automatizadas e dão ganho de produtividade aos jornalistas. Sabendo usá-las, há esse ganho na produtividade e, por outro, libera o profissional para atividades em que a ação humana faça diferença”.

E os veículos de comunicação que saíram na frente já usam recursos de IA há mais tempo. “Eles usam IA para automatizar tarefas, produzir relatórios que incorporem informações financeiras ou resultados de competições esportivas em velocidade muito maior do que um humano conseguiria fazer, resumir histórias, processar grandes bases de dados e ajudar em processos de recomendação de leitura, por exemplo. Mas ainda desconhecemos todos os usos possíveis para esses novos recursos tecnológicos”.

Web 3.0

Arenusa, do Sistema Verdes Mares, em Fortaleza (CE): rede de dados interconectados, ajuda a embasar matérias

Também conhecida como a “Web Semântica”, a Web 3.0 se baseia em tecnologias avançadas que permitem às máquinas entender e interpretar informações de maneira mais precisa. Isso significa que os dados na Web 3.0 serão semânticos, ou seja, terão significado contextual em vez de apenas palavras-chave. No jornalismo, isso traz consigo uma série de possibilidades que podem mudar a maneira como as notícias são produzidas, distribuídas e consumidas.

Enquanto na Web 2.0 as informações são predominantemente armazenadas em servidores centralizados controlados por empresas, a Web 3.0 baseia-se em tecnologias de blockchain e criptografia, permitindo que os dados sejam armazenados e compartilhados de forma descentralizada e segura. “Uma das características da Web 3 é que, além de poder comentar, podemos ter a posse dos conteúdos”, explica Arenusa Goulart, gerente de marketing do Sistema Verdes Mares, em Fortaleza (CE).

Grellmann, da 100fronteiras: “Essa nova forma de automatização traz oportunidades de otimizar trabalhos”

Essa personalização também é impulsionada pela utilização de dados contextuais, sendo possível relacionar as informações de diferentes fontes e criar uma rede de dados interconectados, o que permitirá aos jornalistas terem acesso a uma gama ainda maior de dados para embasar suas matérias. Denys Grellmann, sócio e publisher na 100fronteiras, acredita que essa nova forma de automatização traz oportunidades de otimizar trabalhos. “Na 100fronteiras, tentamos otimizar o nosso tempo. Não chegamos a aprender completamente, mas temos projetos de inserir”, conta.

 

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