Por: João Marcos Rainho e Luiz Zak
O uso de palavras politicamente incorretas voltou à tona com a publicação do Guia de Eliminação de Palavras Nocivas, propondo tirar de circulação da lingua inglesa nos EUA de termos considerados inadequados, e impróprios devido a mudanças de comportamentos e a alusão ao colonialismo e ao racismo, segundo a Universidade Stanford, sediada na Califórnia. A instituição propõe banir palavras como “imigrante” e até o termo “americano”, justificando que podem ofender alguém que não nasceu nos EUA mas vive naquele país. E no final do ano passado a Comissão de Igualdade Racial Tribunal Superior Eleitoral (TSE) lançou uma cartilha que postula banir do vocabulário brasileiro mais de 40 palavras consideradas racistas e preconceituosas, para que elas caiam em desuso.
O documento do TSE visa abolir do vocabulário palavras como “esclarecer”, “nega maluca”, “feito nas coxas”, “mal amado”, “denegrir”, “a coisa tá preta”, entre outras. Há explicações sobre a origem de alguns termos, como a palavra “esclarecer”, que segundo a cartilha, significa tornar algo claro, trazer luz. Ativistas do movimento negro são favoráveis à mudança nas expressões por considerar que remetem ao tempo da escravidão e reforçam o racismo estrutural.
“A comissão visa promover mudança de hábitos e comportamentos nas pessoas e facilitar a exclusão de expressões idiomáticas que possam embutir o preconceito racial”, diz o texto introdutório do documento.
Em 2020, o Instituto Fazendo História publicou uma cartilha com uma série de palavras e expressões que estão no nosso vocabulário cotidiano e que nos fazem reproduzir discursos preconceituosos. Este material, elaborado pelos Grupos de Trabalhos Humanidades e Para Elas, do Programa Sesc e Senac de diversidade – Para Todos, faz um convite à reflexão e à mudança. Algumas sugestões para abolir: “a coisa tá preta”, “a dar com pau” (cuja origem vem da época de escravizados em porões de navios, que preferiam morrer de fome do que se alimentar naquela situação), “cabelo ruim”, “até tenho amigos que são pretos”, “trabalho de preto”, “humor negro”, entre muitas outras.
Real significado das palavras
No entanto, algumas expressões são alvo de discussões entre pesquisadores, linguistas e ativistas, onde alguns defendem essas iniciativas e outros que dizem que pode haver mais de uma interpretação para o significado de determinada palavra.
“Permanecer com certas palavras no nosso vocabulário reforça que o racismo está muito presente em nossa sociedade”, afirma a jornalista, ativista e membro da Rede de Jornalistas pele diversidade na Comunicação, Marcelle Chagas. Favorável, a mudança das expressões consideradas racistas, Marcelle afirma que a algumas expressões remetem a ao momento que em que a escravidão funcionava de forma livre e pautada no racismo: “A partir do momento em entendemos o teor desses termos e permanecemos utilizamos ou somos um racista, ou queremos permanecer no passado, em um momento muito triste da nossa história, com o uso dessas palavras ofendem e produzem sentidos e objetividades”, afirma.
Da mesma opinião compartilha a pedagoga e consultora de diversidade e inclusão, Benilda Brito. Ela ressalta que a oralidade pode representar também uma forma de repressão e dominação: “Nós vemos muitas pessoas usarem a palavra denegrir. Aprendemos que tudo que se torna negro é ruim e essas palavras reforçam o preconceito”.
Para a Benilda, certas expressões vem carregada de ódio e superioridade ao testemunhar que, “para nós negros e negras as palavras aparentemente sutis vem revestidas de violência e contribuem para o racismo estrutural”.
Existe quem acha tudo isso um exagero. Fernando Schuller, cientista político, professor no Insper, chutou o pau da barraca em artigo na revista Veja, referindo-se ao caso de Stanford, dizendo que se trata do resultado de um “moralismo tardio e vitimismo”. Além de impor uma censura, segundo ele, “para disciplinar a linguagem e punir os pecadores”, ironizando e fazendo relação com o papel do Estado e da Igreja em propostas de censura a livros na idade média. Chamou o Guia de “Index”, numa referência a publicação e obras proibidas pelo clero naqueles tempos.
O linguista Aldo Bizzocchi, pesquisador do NEHiLP – Núcleo de Pesquisa em Etimologia e História da Língua Portuguesa da Universidade de São Paulo, foi outra voz que criticou em seu Blog a chamada linguagem politicamente correta e a militância que, “em nome do justo combate a preconceitos e desrespeito a direitos humanos, sentencia de morte certas palavras, atribuindo-lhes uma carga depreciativa que elas efetivamente não têm, como, por exemplo, afirmar (erroneamente) que denegrir faça alguma alusão à raça negra”. E rebatendo criticas a sua postura, voltou à carga: “Existe uma diferença entre a mudança espontânea feita pelo consenso dos falantes e uma tentativa de mudança imposta por certos grupos de poder. Por exemplo, quem decidiu trocar negro por afrodescendente não foram os falantes do português em geral, nem mesmo os próprios negros; foram sociólogos e antropólogos de universidades públicas na esteira do inglês African American, que tampouco foi criado pelos falantes da língua inglesa, mas por cientistas sociais e intelectuais americanos”.
Bizzocchi também ressalta que termos como “afrodescendente” ou “pessoa portadora de necessidades especiais“, segundo ele, “não têm adesão popular; são usados exclusivamente pela imprensa e por ativistas. Os próprios negros em geral se chamam de negros e não de afrodescendentes. Aliás, tenho vários amigos negros e já os vi chamando-se uns aos outros de “negão” ou “crioulo” de forma carinhosa”.
Imprensa condena palavras de conotação preconceituosa
A imprensa não pensa assim de forma tão ingênua. Em 1992, uma nova versão do Manual de Redação e Estilo da Folha de S. Paulo, destacou explicitamente que estava cuidando de termos politicamente incorretos nas normas internas, para a equipe de jornalistas da empresa. E o Manual propôs evitar termos como “preto, crioulo, escurinho, alemão, moreno, de cor, e ainda expressões como afro-brasileiro e cidadão de tipo negróide — este último muito comum nas notícias policiais na época, mas caindo aos poucos em natural desuso. Essas normas continuaram nas edições atuais. Também foram banidos termos como “bicha, veado, fresco, boneca, traveco, sapatão”.
Já no final dos anos 90 as redes inglesas TV BBC e Channel 4 exigiram que seus apresentadores e tradutores de Libras (linguagem para surdos) não fizessem gestos e algumas mímicas, como por exemplo, o dedo em forma de gancho, que naquele país queria dizer “judeu” e puxar os cantos dos olhos para representar um Chinês.
Monteiro Lobato, autor racista?
Imagine então escrever “macaca de carvão”, “carne preta”, “beiçuda” e “um frangalho de nada”, referindo-se a pessoas negras. Esses termos estão nas obras de Monteiro Lobato, do clássico Sítio do Picapau Amarelo. Quando a primeira obra do autor, “A menininha do nariz arrebitado”, completou 100 anos em 2020 e caiu em domínio publico, a bisneta de Monteiro Lobato decidiu republicar o livro sem termos considerados racistas. Foi um fuzuê na época, até com autoridades e até gente do movimento negro criticando a iniciativa. Mario Frias, secretario de cultura na ocasião, disse que o caso era “uma vergonha”. Sérgio Camargo, presidente da Fundação Palmares, falou em mutilação da obra. A alegação foi que os termos são frutos de uma época e também era preciso separar o autor de sua obra. Algo polêmico, já que Monteiro Lobato tinha posições explicitamente racistas em público e era uma admirador do movimento norteamericano Ku Klux Klan, e foi membro da Sociedade Eugênica de São Paulo, entidade que pregava a supremacia branca com pseudos estudos científicos.
A conceituação do que é politicamente correto não é algo fácil e especialistas também destacam que eliminar palavras de conotação discriminatória não acaba com o preconceito e o racismo, mas é um avanço, por não reforçar estereótipos.