Pesquisa sobre as percepções da sociedade a respeito dos povos indígenas no Brasil na última década aponta que seu espaço na imprensa foi ampliado nos últimos anos. Conduzido ao longo de 2021, com a coordenação da jornalista Cristiane Fontes, da Amoreira Comunicação, o projeto contou análise documental e 350 entrevistas em profundidade com diferentes segmentos da sociedade brasileira e detalhado mapeamento sobre a evolução das narrativas sobre povos tradicionais nas redes sociais. A íntegra do estudo está disponível no site Narrativas Ancestrais, Presente do Futuro.
O levantamento com 350 formadores de opinião aponta que os indígenas se tornaram mais visíveis na grande imprensa durante a última década, incluindo o Brasil de Bolsonaro. Em geral, os elogios dos públicos engajados com temas indígenas foram, quase que em sua totalidade, dirigidos a jornalistas e programas e não a veículos de comunicação. André Trigueiro, Rubens Valente e Eliane Brum foram os jornalistas mais citados pela excelência, relevância e alcance de seus trabalhos. O Jornal Nacional e o Fantástico foram os programas jornalísticos mais citados como exemplos dessa maior abertura às pautas indígenas. Também da Rede Globo, o programa Falas da Terra foi descrito como um marco da TV brasileira.
A emergência de veículos independentes como Repórter Brasil, Agência Pública, InfoAmazonia e Amazônia Real foi considerada uma importante mudança na cena midiática do Brasil. Plataformas como G1, UOL e Terra, por sua vez, estiveram entre os veículos que se destacaram no acúmulo de engajamento no Facebook na última década.
O estudo foi conduzido junto a públicos engajados e não engajados com questões indígenas. Entre os formadores de opinião dos públicos não engajados, muito pouco do que sabem sobre temas relacionados aos indígenas é baseado na cobertura da grande imprensa. Os veículos mais mencionados foram Folha de São Paulo, O Estado de São Paulo, CNN, GloboNews, Jornal Nacional e Jornal da Record. Com exceção dos jornalistas regionais ouvidos pelo estudo, as concepções sobre os povos indígenas dos públicos não engajados parecem ser formadas a partir de fragmentos de informação, às vezes, apenas títulos de reportagens ou de publicações em redes sociais.
Para uma parcela dos entrevistados, o aumento da cobertura de temas indígenas pela imprensa brasileira resultou também de mudanças comportamentais, como o enfrentamento ao racismo, a agenda de representatividade e diversidade, a profusão de conteúdos na internet e nas redes sociais. Mas diversos deles consideram que o incremento da cobertura sobre os povos indígenas ainda é “insuficiente” e “insatisfatório” diante das omissões e distorções históricas e da diversidade de povos e realidades em todo o país, não apenas na Amazônia. A necessidade de dar mais visibilidade aos povos de outros biomas brasileiros foi um ponto destacado por diversos entrevistados.
Outras críticas frequentes à cobertura da imprensa foram a generalização, o uso de termos inadequados e o fato de jornalistas ainda ouvirem cientistas, e não os indígenas, como especialistas. Alguns entrevistados mencionaram ainda a falta de reportagens sobre o cotidiano dos povos indígenas em seus territórios, sobre as questões que permeiam suas vidas no presente e sobre seus modos de vida, saberes, culturas e cosmologias, sem exotismos.
A crise financeira da imprensa foi descrita como uma limitação para a produção de reportagens investigativas e ao redor do Brasil, restringindo o que sabemos sobre o país à agenda política em Brasília.
Sobre a pesquisa
A pesquisa Narrativas Ancestrais, Presente do Futuro mapeou e analisou as percepções sobre os povos indígenas e as principais narrativas deles e sobre eles no Brasil na última década.
O estudo foi coordenado por Cristiane Fontes, da Amoreira Comunicação, jornalista que há mais de duas décadas trabalha com a agenda socioambiental, atualmente em Oxford, na Inglaterra; e implementado com a participação da Ipsos, uma das principais empresas de pesquisa e de inteligência de mercado; e da Diretoria de Análises de Políticas Públicas da Fundação Getúlio Vargas (DAPP/FGV), referência mundial em pesquisas aplicadas em redes sociais.
A Ipsos conduziu o componente da pesquisa com os públicos não engajados, que contou com 100 entrevistas em profundidade, distribuídas entre população geral de perfil conservador e formadores de opinião – economistas, lideranças políticas, líderes empresariais e jornalistas regionais.
Além disso, foram entrevistadas 250 pessoas engajadas e interessadas na temática indígena, incluindo ativistas, antropólogos, cineastas, jornalistas, representantes de ONGs nacionais e internacionais, artistas, juristas, comunicadores e lideranças de organizações não-governamentais (ONGs) ambientalistas e indigenistas do país, além de cientistas políticos, comunicólogos, editores, autores e representantes de agências de pesquisa de tendências de comportamento e inovação. Embora a análise seja sobre as percepções do restante da sociedade a respeito do que é dito por indígenas e sobre eles, os pesquisadores também ouviram algumas das principais vozes indígenas hoje no Brasil, como lideranças, artistas, pesquisadores, comunicadores e influenciadores digitais.
As redes sociais, por sua vez, foram analisadas pela Diretoria de Análise de Políticas Públicas da Fundação Getúlio Vargas (DAPP/FGV) a partir da coleta de mais de 9,7 milhões de postagens no Facebook, Instagram, Twitter e YouTube sobre pautas relativas aos povos tradicionais. No caso do Facebook, YouTube e Instagram, a análise cobriu uma década, entre 2011 a 2021; no Twitter, o período analisado foi 2019 e 2021.
Públicos não engajados desconhecem realidade indígena na atualidade
As entrevistas com os públicos não engajados, conduzidas pela empresa de pesquisa e de inteligência de mercado Ipsos, revelaram um profundo desconhecimento e distanciamento da importância e da realidade dos indígenas na atualidade e também antagonismo, desinteresse e rejeição aos direitos indígenas, especialmente o direito à terra. Esses direitos tendem a ser vistos por esses públicos como em “contraposição” aos direitos de outros segmentos da população geral — a perspectiva, portanto, é de um espaço de disputas em que, “se o outro ganha, sou eu quem perco”.
“Esse resultado é preocupante, uma vez que esses públicos são tomadores de decisão na economia e na política brasileira e suas percepções moldam o debate público no Brasil sobre o tema”, diz a coordenadora do projeto.
A conexão dos povos indígenas com o meio ambiente é, em geral, reconhecida pelos públicos não engajados, mas seus modos de vida tendem a ser associados a pobreza, necessidade de auxílios governamentais e carências em geral e não outras maneiras de estar no mundo, cada vez mais valorizadas pelos públicos engajados como respostas à crise climática.
Os públicos não engajados ainda não conhecem ou compreendem a importância de estudos e do reconhecimento internacional por parte de organismos como o Painel Intergovernamental de Mudanças Climáticas (IPCC, na sigla em inglês) da centralidade dos direitos territoriais dos povos indígenas para a agenda climática. Perguntados sobre o interesse internacional pelos povos tradicionais no Brasil, a maioria não concordou — creditando tal interesse a preocupações com o meio ambiente.
“Quando falamos sobre o protagonismo do Brasil na agenda climática global ainda precisamos dar muito mais visibilidade ao papel dos povos indígenas, assim como ampliar as discussões sobre modelos de prosperidade econômica para o país que incluam a gestão ambiental desses territórios, que já estiveram entre as políticas públicas do país desenvolvidas com apoio da cooperação internacional, assim como levar em consideração a crescente valorização dos indígenas como parte da identidade nacional e do crescente interesse, especialmente entre os mais jovens, pela nossa ancestralidade e em recontar a nossa história, afirma Cristiane Fontes.
Maior visibilidade, organização e ocupação de espaços de discussão
Ainda que previsíveis e esperadas, as diferenças entre as percepções dos indígenas e públicos engajados e as dos públicos não engajados são gigantescas.
Entre os públicos engajados, a auto representação, o protagonismo e o processo de ocupação de espaços com vozes dos próprios indígenas a partir de uma organização inédita do movimento indígena, do aumento expressivo de estudantes indígenas nas universidades, da diversidade de influenciadores digitais e comunicadores indígenas nas redes sociais e da emergência de artistas e pensadores indígenas foram descritos como grandes novidades da última década.
Sônia Guajajara, Ailton Krenak, Jôenia Wapichana, Cacique Raoni e Davi Kopenawa foram descritas como as principais vozes indígenas deste período, por motivos que incluem a inserção na vida político-partidária, a publicação de livros icônicos e best sellers com críticas poderosas ao modelo de desenvolvimento da sociedade brasileira e global e as alianças estabelecidas com líderes e artistas no Brasil e internacionalmente.
O protagonismo de lideranças indígenas femininas no movimento indígena também foi uma mudança celebrada pelos entrevistados e destaque da análise sobre os conteúdos nas redes sociais. Os resultados da pesquisa sobre o debate nas redes sociais apontam para a centralidade de perfis indígenas e protagonismo crescente de mulheres ativistas, a exemplo de Sônia Guajajara, Célia Xakriabá e Alice Pataxó, cujo perfil passou a ser o com maior alcance potencial no debate sobre povos indígenas no Twitter em 2021, por exemplo.
A Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib) foi a organização mais destacada pelos públicos engajados, seguida pelo Instituto Socioambiental (ISA), considerada uma organização descrita como a principal referência e fonte de informação de formadores de opinião de diversos segmentos.
O Acampamento Terra Livre (ATL) foi apontado por esses públicos como o principal evento marco da última década e o que tem gerado algumas das imagens mais icônicas de luta e resistência, como as de indígenas ocupando espaços icônicos da capital política do país.
Já entre os públicos não engajados, a representatividade ainda foi atribuída a organizações como a Funai, as ONGs e lideranças religiosas, raramente foram citados nomes específicos de lideranças indígenas e, entre esses segmentos, a imagem dos povos indígenas foi mais associada à vulnerabilidade e não à força.
Visão distante e fragmentada e projeção negativa no Brasil de Bolsonaro
A concepção sobre os povos indígenas entre os públicos não engajados é formada a partir de fragmentos de informação na grande imprensa, às vezes, apenas títulos de reportagens, com pouco aprofundamento, e posts nas redes sociais, que a partir de 2018 passam a contar com contranarrativas produzidas pelo presidente Jair Bolsonaro e aliados, como apontam os dados da DAPP/FGV.
Para os públicos engajados, apesar da produção jornalística ainda ser muitas vezes “pouco ou mal contextualizada”, ou “distorcida”, especialmente quando tratam do direito à terra e conflitos fundiários, houve aumento e melhoria da cobertura da grande imprensa nos últimos anos não só, mas principalmente porque o presidente Jair Bolsonaro colocou esse assunto no centro do debate político do país.
Mesmo entre os públicos não engajados foi quase consenso que, sob o governo do atual presidente da República, os ataques de grileiros, garimpeiros e fazendeiros e a vulnerabilidade dos povos indígenas aumentaram ainda mais. Com Jair Bolsonaro reeleito, a regressão prevista para os povos indígenas aponta para um cenário, segundo os entrevistados, de assimilação cultural como possibilidade provável e muito próxima e, até mesmo, de extermínio.
Educação, atividades socioeducativas e novas apoiadores
Para muitos dos entrevistados dos públicos engajados/interessados, o respeito e a valorização dos povos indígenas pela sociedade brasileira só será possível após longos e massivos investimentos em educação, mudanças radicais no sistema político e reparação do Estado brasileiro.
Como essas são medidas de longo prazo e hoje distantes da realidade do Brasil, a pesquisa também inclui uma série de medidas que podem ser adotadas a curto prazo, entre as quais: ampliar a promoção de encontros, debates políticos e atividades socioculturais de indígenas com não-indígenas; a produção de campanhas e de materiais didáticos, testando diferentes linguagem simples e estéticas e sem jargões e linguagem confrontacional; traduzir e explicar o apoio à causa indígena por meio de vozes relevantes no cenário internacional; expandir o número de apoiadores entre diferentes segmentos da sociedade, a exemplo do que ocorreu com artistas nos últimos anos; e obter compromisso com as pautas indígenas entre candidaturas não indígenas nas próximas eleições.
“Os achados apontam as barreiras, mas também caminhos para avançarmos, apesar de um contexto completamente desfavorável e, de maneira geral, de uma visão bastante atrasada no país e descolada de tendências internacionais sobre não apenas os desafios, mas as novas oportunidades e os novos modelos de prosperidade para a humanidade em tempos de colapso ecológico e crise climática. A pesquisa com os públicos não engajados mostrou que, quanto mais informados, mais conscientes são da diversidade e da complexidade do tema e mais interessados em compreender melhor a realidade dos povos indígenas”, conclui Cristiane Fontes.