O aumento da violência contra profissionais da imprensa brasileira nos últimos anos tem preocupado o meio jornalístico, que enxerga nesses acontecimentos uma preocupante tendência de naturalização de ataques contra o setor. De acordo com relatório anual da Associação Brasileira de Emissoras de Rádio e Televisão (Abert), pelo menos 230 jornalistas e veículos de comunicação sofreram algum tipo de violência em 2021.
Esse contexto de violência crescente tem levado jornalistas, empresas do setor e entidades de classe a se preocuparem com a atuação dos profissionais da área durante o ano de 2022, já que neste ano serão realizadas eleições dentro de um cenário de polarização política e acirramento dos ânimos.
Em 2020, segundo o Relatório Anual de Violações à Liberdade de Expressão da Abert, a violência contra jornalistas cresceu 167,85% em relação a 2019. Já em 2021 foi registrado um aumento de 21,69% em relação ao ano anterior, o que significa 145 casos de violência não letal envolvendo pelo menos 230 profissionais da imprensa e veículos de comunicação brasileiros.
O levantamento divide as ocorrências em dez categorias: ofensas (53); agressões (34); intimidações (26); ameaças (12); atentados (8); censuras (1); ataques e vandalismo (4); roubos ou furtos (1); decisões judiciais (29); e sequestros (1).
Entre os autores das intimidações, oito são políticos ou ocupantes de cargos públicos. A cobertura política também é o principal alvo desse tipo de ataque, com 14 casos registrados por jornalistas da área, dez por jornalistas da editoria de Cidades e outros dois por profissionais da cobertura de Esportes.
No ano passado também foi registrado um aumento no número de comunicadores agredidos. Pelo menos 61 profissionais do setor foram vítimas de chutes, pontapés, socos e tapas. As equipes de TV foram as mais atingidas por esse tipo de violência, sendo vítimas de 62,22% dos casos.
Insegurança e medo
“Os números da violência contra jornalistas no Brasil são mais do que suficientes para afirmarmos que há, no país, uma situação de insegurança para o exercício da profissão. Para a Fenaj, essa escalada de violência é consequência direta do crescimento dos movimentos de extrema-direita, coroado com a ascensão de Bolsonaro à presidência”, afirma Maria José Braga, presidente da Federação Nacional dos Jornalistas (Fenaj).
Para Braga, é importante ressaltar que os jornalistas são agredidos porque cumpriram com seu papel de levar informações de interesse público para a sociedade e não por terem cometido erros. “A Fenaj e os sindicatos de jornalistas de todo o país estão em estado de alerta neste ano eleitoral, temendo que haja uma continuidade da escalada de violência contra a categoria que vem se mantendo nos últimos três anos. O temor se justifica principalmente porque políticos (ou pessoas ligadas a eles) são os principais agressores e, entre eles, destaca-se o próprio Presidente da República. Como teremos eleições gerais e os candidatos estarão mais expostos, poderão haver mais reações violentas ao trabalho da imprensa”, alerta ela.
A presidente da entidade destaca que, em muitos casos, a defesa da liberdade de imprensa feita por candidatos ou agentes políticos é mera retórica e se há críticas ou denúncias, as reações nem sempre são compatíveis com a democracia e o Estado de Direito.
Resolvendo a situação
Para Cecília Olliveira, jornalista investigativa dedicada à cobertura sobre segurança pública e diretora do Instituto Fogo Cruzado, já é muito tarde para que se altere o que pode acontecer com os jornalistas neste ano.
“Era preciso ter aprendido com o tempo e se planejado. A sociedade foi estimulada pelo presidente da república e seus seguidores a atacarem jornalistas. Antes mesmo de assumir o cargo, Jair Bolsonaro já estimulava atitudes hostis contra a imprensa. Na posse, os organizadores do evento criaram uma série de dificuldades ao trabalho dos jornalistas, limitando sua locomoção entre os diferentes prédios públicos de Brasília”, reforça Olliveira.
De acordo com a jornalista, esse é um problema maior que precisa ser tratado com mais seriedade. Ela também considera que entidades de classe e veículos de comunicação – além dos legisladores e fiscalizadores do poder público – demoraram para levar esse problema em consideração.
“Vejamos o caso dos jornalistas diariamente humilhados e atacados pelo Presidente da República e seus pares no chamado ‘cercadinho’, em Brasília. Isso, claro, não justifica a demora para que a violência contra jornalistas fosse levada a sério, mas é um exemplo de como todos – inclusive os próprios profissionais da imprensa – demoraram para entender o que estava acontecendo e o que estava por vir”, destaca.
Braga também tem a percepção de que a resposta para o combate à violência contra jornalistas não está próxima de ser encontrada, reforçando que um contexto no qual o chefe do Executivo é um dos principais agressores não é favorável para a segurança da categoria. “A Fenaj defende que o Estado brasileiro deve ter medidas para garantir a segurança dos profissionais, a começar pela definição e implementação de um protocolo de atuação das polícias em manifestações populares”, pontua.
Para ela, também é preciso que o Estado brasileiro seja um agente de combate à impunidade, com as Polícias Civis atuando para identificar e responsabilizar os agressores e o Poder Judiciário agindo celeremente para a punição dos culpados.
Além da necessidade de que a sociedade se coloque efetivamente a favor da livre circulação da informação jornalística, Braga destaca que é preciso que os jornalistas como categoria e as empresas de comunicação também façam a sua parte, denunciando as agressões e apoiando as vítimas.
“Para as empresas, a Fenaj propõe um protocolo de segurança a ser adotado internamente por cada uma. A principal medida prevista neste documento é a criação de comissões de segurança para avaliação de riscos em situações determinadas e a definição de medidas mitigadoras desses riscos”, complementa a presidente da entidade.
Sobre a importância dos veículos de comunicação apoiarem os profissionais, Olliveira considera que eles precisam ser sensíveis às percepções de suas equipes, que conseguem medir o calor das ruas. Para ela, é preciso também buscar a responsabilização dos culpados e pressionar o poder público por medidas que inibam ataques.
“Para ser sincera, eu estou temerosa porque estamos em um momento do nosso país onde os jornalistas viraram alvo. Muito disso acontece pela figura do presidente, que não esconde de ninguém que não gosta de jornalistas, e pela relação tensa que tem com os meios de comunicação, levando muitos correligionários dele a terem a mesma visão”, relata Patrícia Paixão, jornalista, doutora pelo Prolam/USP e professora universitária.
Ela também considera que os veículos precisam repensar a maneira de cobrir certos acontecimentos e ver até que ponto vale a pena expor suas equipes de comunicação a situações onde elas correm o risco de serem agredidas, como as coberturas das “motociatas” realizadas pelo presidente.
A professora também acha essencial uma mudança cultural e educacional na maneira de ver o jornalismo com um trabalho de alfabetização midiática que ensine os processos de produção jornalística. “Talvez com medidas assim, a médio ou longo prazo, nós possamos ter uma sociedade que valorize mais o jornalismo, porque se as pessoas entendessem de fato como ele funciona, elas não abraçariam essa ideia de propagar a violência contra jornalistas.”
Violência de Gênero
A violência focada em questões de gênero ou sexualidade também tem impactado o trabalho dos profissionais de comunicação. De acordo com o relatório “Violência de gênero contra jornalistas”, produzido pela Abraji em 2021, jornalistas e veículos foram alvos de 45 ataques utilizando gênero, sexualidade ou orientação sexual como argumentos para a agressão. A maior parte dessas agressões (75%) são caracterizadas por narrativas que utilizam violência verbal com o intuito de hostilizar e descredibilizar jornalistas.
O levantamento revela que 71,4% dos insultos tiveram origem ou foram repercutidos nas redes sociais e os principais agressores identificáveis foram homens, que correspondem a 95% dos abusos dentro e fora da internet.
A Abraji também monitorou redes sociais e identificou 57 ataques sistemáticos envolvendo usuários que são propagadores de agressões a profissionais da imprensa. Dentro dessa análise, foi verificado que 59,9% dos casos de discursos estigmatizantes foram iniciados por publicações de autoridades de Estado e outras figuras proeminentes no campo político brasileiro. Como reflexo, em 60% dos alertas, a vítima cobria ou comentava questões relacionadas a política.
O estudo mostra ainda que os ataques foram direcionados em sua maioria para repórteres e analistas de meios de comunicação (85,7%). O maior número das ocorrências aconteceu na região Sudeste (66,4%), seguida pelo Nordeste (12,6%) e Centro-Oeste (11,7%).
Para Leticia Kleim, assistente jurídica da Abraji e coordenadora do relatório, a naturalização dos ataques dificulta traçar um retrato desse tipo de violência. “O relatório vem para dizer que esses episódios são uma forma de violência que soma a censura à liberdade de imprensa a ataques machistas ou LGBTfóbicos e que não devem ser normalizados”, analisa.