Em homenagem ao Dia Nacional da Liberdade de Imprensa (7 de junho), relembramos a importante palestra de Eugênio Bucci realizada durante o Fórum de Jornalismo Regional e Comunitário, realizado na Unibes Cultural, em 2019, antes do período da pandemia. Em evento anterior, o jornalista foi escolhido por sua contribuição ao jornalismo, ao ensino e à defesa do interesse público na comunicação, sempre em busca da construção de uma sociedade mais ética e democrática.
Bucci, presença constante nos eventos do Cecom – Centro de Estudos da Comunicação e Plataforma Negócios da Comunicação, tem insistido até hoje no tema, em eventos recentes, que “sem jornalismo não existe democracia“. Além da presente matéria, divulgamos abaixo a integra da palestra de Bucci e outro vídeo de homenagem ao jornalistas, professor e escritor.
Em sua palestra: “Por que o Brasil precisa da imprensa – mais do que nunca”, Bucci saiu em defesa da importância do livre exercício da profissão e recordou momentos históricos em que a conduta – que hoje tem sido tão contestada – dos profissionais foi crucial para a descoberta de informações fundamentais para a sociedade e que mudaram os rumos da história. Confira a seguir a palestra completa.
Também vale a pena ler aqui a homenagem feita pelo Cecom e Plataforma Negócios da Comunicação, aos 40 anos da Associação Nacional dos Jornais (ANJ), onde Bucci também estava presente. E outra matéria sobre a importância do jornalismo segmentado, com novas declarações de Bucci.
A 8ª edição do Prêmio Especialistas, ocorrido ano passado, também destacou a importância e a força do jornalismo, tanto das grandes redes, grandes jornais, até o trabalho independente e os meios de comunicação especializados.
Com a palavra, Bucci
“Nunca o papel da imprensa esteve tanto em xeque como agora e nunca nós precisamos tanto da imprensa. Temos visto que as reportagens que desvendam condutas impróprias do poder político e do poder do Estado, o Executivo, mas também do poder Judiciário, Legislativo, são questionadas com uma alegação que entrega um dos maiores vícios, uma das maiores deficiências, da nossa cultura política no Brasil. Ela não assimilou o significado do que é liberdade de imprensa, devido à sua radicalidade. Não assimilou que cabe à imprensa fiscalizar o poder. E é por isso que aparecem esses vícios e esses déficits nas críticas que o poder vem dirigindo à imprensa.
Dever
O que é que se diz? Que uma informação de origem duvidosa, suspeita ou criminosa não pode ser publicada nos jornais. Isso é um traço distintivo do que acontece no Brasil, quando comparamos com o que acontece nos EUA. Claro que os jornalistas não podem roubar informação de quem quer que seja. Não podem contratar serviços de um hacker ou de quem quer que seja que vá praticar um ato criminoso para obter uma informação. Mas jornalistas não apenas podem, como têm o dever de considerar a publicação de um material de origem duvidosa que atenda ao interesse público e que mostre erros na conduta dos poderosos, dos que estão incumbidos de função pública de estado.
Quero lembrar três casos. Há poucos anos, o jornal O Estado de S.Paulo publicou que a prova do ENEM tinha vazado – um ladrão havia roubado a prova. Essa era uma notícia que iria afetar a vida de milhões de candidatos inscritos e também das famílias destes candidatos. A repórter Renata Cafardo só teve acesso a esse material e só pode confirmar a veracidade dessa suspeita porque ela teve um entendimento com alguém que tinha parte com o crime que foi praticado. Se a repórter não pudesse verificar o material roubado, ela não poderia ter dado uma notícia que ajudou muita gente e, nesse caso, ajudou o Poder Público. Porque a prova foi remarcada, corrigiram o erro e se tocou para frente a vida da administração pública.
Nos final dos anos 1960, nos EUA, um cidadão roubou os famosos documentos do Pentágono. Eram milhares de páginas. E entregou esse material primeiro para o New York Times, depois para o Washington Post e para outros jornais. A origem do material era viciada, um ato indevido de alguém que tinha trabalhado para aquela organização e roubou o material. Os jornais publicaram. Ninguém questionou a conduta dos jornalistas de publicarem. E isso foi, depois, investigado. E o conteúdo dos documentos do Pentágono dava conta de que o governo americano, sabendo de problemas gravíssimos da Guerra do Vietnã, escondia a informação para manter o país em uma guerra que não deveria manter.
Watergate
Também conhecemos o caso Watergate. Depois de pouco mais de 30 anos, pudemos conhecer a fonte de dois jovens jornalistas do Washington Post que lideraram a reportagem sobre o famoso Watergate, que culminou com a renúncia do Presidente Richard Nixon em 1974. Essa fonte era “apenas” o segundo homem do FBI (Federal Bureau of Investigation), apelidado de “A Garganta Profunda”. Ele passava informações aos jornalistas, que depois checavam, publicaram essas informações e, por fim, conseguiram esclarecer o nexo entre o Presidente da República e aqueles que invadiram o escritório do Partido Democrata no Edifício Watergate.
Outra vez, uma informação de origem indevida, porque o funcionário do FBI não tinha autorização para divulgar aquelas informações. Podemos ter mais exemplos, Edward Snowden, entregando material que ele gravou indevidamente para o jornalista Glenn Greenwald, que trabalhava para o Guardian, mostrou abusos praticados pela NSA nos EUA. Essa reportagem acabou ganhando o Pulitzer e estarreceu o mundo porque nos dava a impressão de que o hábito de vasculhar a vida alheia no governo americano teria ido mais longe do que foi a Stasi na Alemanha Oriental no período da Guerra Fria.
Mas há inúmeros outros exemplos. E agora no Brasil estamos vivendo um exemplo desses, com a publicação de vários jornais, além do Intercept, eu me refiro à Folha de S.Paulo, à revista Veja, à Agência Pública, de elementos com indícios muito fortes de condutas indevidas das autoridades. Mas a origem do material é suspeita. Qual o papel do jornalista: publicar ou não publicar? É avaliar o interesse público, a veracidade, e se for o caso, com fundamentação, publicar para ajudar a sociedade a aperfeiçoar sua democracia.
Democracia
Nós nunca precisamos tanto disso e nunca precisamos tanto do esclarecimento disso. A imprensa foi criada para fiscalizar o poder. A imprensa é uma invenção muito recente como instituição, ela data do século 18 como instituição, mas ganha corpo no final do século 19. É muito pouco tempo e sem ela, a instituição que fica fora do Estado, não há como a democracia funcionar, porque sem ela não há como a cidadania interpelar o poder e falar ‘espera aí, o que você tá fazendo aí?’.Não pode questionar, e não podemos saber se o poder está agindo conforme estabelece a lei ou se o poder está abusando. Não há democracia sem imprensa livre por esse motivo. E nesse momento, mais do que antes isso está em questão.
Eu vim aqui com muita alegria e um enorme sentimento de responsabilidade para fazer esse alerta sobre por que precisamos da imprensa, de cada jornalista, de cada pequeno veículo, em cada pequena cidade brasileira, de pequenos órgãos de imprensa e grandes órgãos de imprensa nunca foram necessários e o poder abusa, não só no Poder Executivo, mas no Judiciário, Legislativo, Econômico. Sem imprensa nós não teríamos esperança.
Não se iludam, a imprensa é uma invenção recente e a democracia é uma invenção muito recente, porque nascem juntas. Na França, as mulheres começaram a votar depois da segunda guerra mundial. O que aparece no século 18 é uma revolução liberal que lança as bases da democracia. Mas a democracia nós estamos conquistando agora e ainda falta muito. Na Suíça, as mulheres começaram a votar a partir dos anos 1970 e até 1991 havia um Cantão que não havia consumado o direito de voto das mulheres. Nossa democracia é frágil em vários países, no Brasil também. E se nós queremos acabar com ela, o caminho mais curto é não reconhecer a imprensa, não prestigiar a imprensa, não dar a ela o valor que ela tem.”
Assista a palestra completa:
Veja também a homenagem a Eugênio Bucci, ocorrida em 2017 durante o Prêmio Especialistas (2017):