Quem tem medo do Big Data?

. Por natureza, as palavras rivalizaram com os números: objetivos, transparentes e confiáveis, como um cão fiel

O texto é como um gato. Seduz, envolve e guarda intenções que muitas vezes são difíceis de interpretar. Por natureza, as palavras rivalizaram com os números: objetivos, transparentes e confiáveis, como um cão fiel. No jornalismo, por mais que os repórteres construam histórias e matérias em cima de números, estes sempre foram apresentados por especialistas e consultores. Não passam, muitas vezes, de portadores da mensagem. A verdade é que grande parte dos jornalistas nunca criou afinidade com eles. Assim como tantos, os brasileiros são escritores com veia humanista e não pesquisadores científicos. São ariscos aos números. E tampouco foram treinados ou estimulados para interpretar uma tabela. Os cursos superiores da área nunca ofereceram conhecimentos científicos ou técnicos profundos. Mas essa relação de cão e gato está com os dias contados.

No mundo digital tudo são números. Até mesmo as palavras se transformam em zeros e uns. E essa massa incalculável de dados é a matéria-prima da nova era do jornalismo, baseada em análises e não em técnicas literárias. Se antes havia escassez de informação e encontrar uma notícia era uma luta, hoje sua disponibilidade em abundância, e a necessidade de volume alto de produção, tornou tanto jornalistas quanto leitores anestesiados à contestação. Releases ditam a pauta e comunicados oficiais são sempre aceitos. A possibilidade de interpretar esses dados disponíveis, na busca pela verdade, pode, inclusive, prever as próximas chamadas do noticiário — e não apenas anunciá-las.

Não à toa, startups especializadas em análise e interpretação de dados,
como a Narrative Science e a Automated Insights, já estão vendendo notícias esportivas sobre a Copa do Mundo para agências e veículos de comunicação, graças a seus algoritmos. E modelos de negócio como esses podem roubar o espaço dos veículos de comunicação, que precisam investir no treinamento de suas equipes para a produção de conteúdos exclusivos, pois possuem credibilidade junto ao leitor. Alguns veículos têm a visão apurada sobre esse processo e tem sido recorrente o apoio com maior afinco às iniciativas de jornalismo de dados — que sempre existiram na redações, mas tratava-se do empenho individual de profissionais entusiastas.

“O principal é a possibilidade de obter diferenciais, informações exclusivas a partir de dados que não raro estão disponíveis para todos e a grande vantagem é que fazer essa análise independente permite questionar as fontes com base na informação que elas próprias produzem. Isso torna mais ativo o papel do repórter”, explica Marcelo Soares, professor do curso de Jornalismo de Dados da ESPM.

REFLEXO DOS DADOS
O resultado disso tem sido reportagens de fôlego com grande impacto social. Essa, talvez, seja uma das principais vocações do jornalismo de dados: refletir realidades e dar voz às minorias. Além disso, os projetos sempre estão munidos jornalismo dede apresentações diferenciadas e gráficos para auxiliar o entendimento das informações. Embora caminhem lado a lado, jornalismo de dados e infografia não são a mesma coisa.

Um exemplo recente é o especial “A tropa dos confrontos”, responsável por revelar que 20 policiais militares estiveram ligados a mais de 10% dos autos de resistência (mortes em confronto com a polícia), no estado do Rio de Janeiro, entre 2010 e 2015. O trabalho foi uma iniciativa dos repórteres Fábio Teixeira e Igor Mello, que passaram 11 meses trabalhando nesse material publicado no jornal impresso e no site d’ O Globo.

A reportagem provocou uma investigação pelo Ministério Público, que está em andamento, e obteve alto índice de leitura nos meios digitais. “O jornalismo de dados e de checagem é uma das grandes apostas de O Globo. Há uma equipe dedicada ao tema, com um editor, um editor assistente e dois repórteres. Mas a ideia é que todas as editorias se envolvam nesse projeto, colaborando nas checagens ou sugerindo e produzindo pautas próprias”, explica Maria Fernanda Delmas, editora executiva da Infoglobo.

Um exemplo, ela aponta, é um superespecial digital produzido por cerca de seis meses, e que resultou em grande aprendizado para as equipes. Batizado de “A guerra do Brasil”, levantou os números de violência no país e concluiu que por aqui se mata mais do que em muitas guerras. Para sua produção, depois transformada em documentário de quase 15 minutos, foram compradas ferramentas de edição e foi contratado o trabalho de profissionais externos. “Esse projeto usou dados do Datasus, plataforma do Sistema Único de Saúde, que compila dados de estados e municípios. Também foram usadas estatísticas de população do IBGE, dados da
ONU para outros países, pesquisas de governos, de ONGs e de universidades estrangeiras”, enumera Maria Fernanda.

Desde julho, a redação da Folha de S.Paulo passou a contar com o Núcleo de Inteligência da Folha (NIF) para pautas que envolvam grandes bases de dados. Sob a coordenadoria de Fábio Takahashi, a equipe tem chamado a atenção. Um dos destaques recentes é o especial “Música Muito Popular Brasileira”, em que foram analisados 134 bilhões de execuções no YouTube para mapear de que maneira os brasileiros consomem música; além da reportagem de grande repercussão que apurou que metade dos produtos na Black Friday têm promoção “falsa”.

Takahashi aponta que, apesar de “novo”, o núcleo já é referência na redação, sendo procurado para projetos interessantes e os materiais quase todos com chamadas na primeira página e audiência alta. “Estou encantado com essa multidisciplinaridade que o jornalismo de dados traz e até exige. Trabalhar diretamente com analista de dados, designers e desenvolvedores, no mesmo projeto, eleva a qualidade da apuração e da apresentação do material jornalístico. Essas diferentes experiências complementam barbaramente as práticas clássicas jornalísticas”, explica.

Há 50 anos, Phillip Meyer ganhou um Pulitzer com uma matéria feita à base de dados

OLHAR ESPECIALIZADO
Os dados não mentem. Como qualquer outro entrevistado, é preciso saber as perguntas certas e interpretar as respostas. “Entrevistar tabela é um negócio legal, mas ela não te dá respostas objetivas, você tem que interpretar. E isso é que é importante. A gente tem muito acesso, mas poucos sabem usar”, endossa Pedro Kutney, editor da plataforma Automotive Business.

Uma das empreitadas recentes foi uma pesquisa sobre o programa Inovar Auto que, da incentivos a indústria automotiva com base em eficiência energética. “As montadoras que não atingem a meta pagam multa e as que superam ganham em pontos de desconto. Para calcular, eles pedem o peso do carro, número de vendas de cada um e quanto ele consome. Graças a um trabalho com uma consultoria, conseguimos levantar esses dados de forma independente antes de o governo fechar os resultados”, conta. Ele aponta que existe uma demanda por informações nos setores da indústria, o que é uma oportunidade para os jornalistas especializados.

A área de saúde é um desses exemplos. “Lidamos diariamente com estudos científicos e é preciso aplicar aos dados estatísticos o mesmo espírito crítico que o jornalista destina a todo o tipo de informação com que trabalha. Precisamos questionar que valor é aquele, ou seja, se são números absolutos ou relativos; se referem a uma proporção, a um índice etc. E, principalmente, quem produziu”, enumera Claudia Colucci, jornalista especializada em saúde da Folha de S.Paulo.

Nicola Pamplona, especialista na cobertura de Petróleo e Gás, da Folha de S.Paulo, aponta que o surgimento de novas fontes de dados abriu espaço para narrativas jornalísticas diferentes que não mais se limitam às informações passadas oficialmente por fontes ou entidades. “Isso melhora a possibilidade de fiscalização da gestão pública ou investigação sobre empresas, além de ser um elemento a mais para reforçar e ilustrar os temas investigados pela reportagem”, analisa Pamplona.

Dal Marcondes, diretor executivo da Envolverde, alerta que os dados sobre saneamento no Brasil são pouco confiáveis e a verificação da origem desses dados é sempre fundamental para a boa informação ao público. “No Governo Federal eles são organizados pelo Sistema Nacional de Informações sobre Saneamento – SNIS. São autodeclaratórios e sem uma métrica unificada — cada empresa, pública ou privada, declara o que quer, segundo sua metodologia. Não há elementos e comparabilidade entre eles”, diz Marcondes. Fatores que tornam o trabalho ainda mais desafiador, e o jornalista que se dedica à cobertura precisa conhecer bem os principais indicadores do setor e os pontos fora da curva.

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