Veículos de imprensa não podem mais ser processados por mentiras e difamações de entrevistados

O novo entendimento do próprio STF derruba tese anterior que promovia a censura e autocensura. A exeção, agora, é se o veículo agir de ma fé e for provado que sabia que a declaração era mentirosa

O Supremo Tribunal Federal (STF) decidiu nesta quinta-feira (20), em Brasília, reformular a tese do julgamento no qual a Corte admitiu a responsabilização de veículos de imprensa pela publicação de entrevistas nas quais sejam imputadas declarações falsas a terceiros. Agora, deverá ser provado que o veículo agiu de má-fé, que sabia que a declaração do entrevistado era mentirosa e não tomou providências a respeito, como desmenti-lo durante a entrevista ou logo após.

Essa polêmica começou em 1995, num caso único no  judiciário brasileiro pós-democratização, quando o ex-deputado federal Ricardo Zarattini Filho processou o jornal Diário de Pernambuco por danos morais, em função de uma reportagem publicada em 1995. Na matéria jornalística, o político pernambucano Wandenkolk Wanderley, ex-delegado de polícia que trabalhara para o aparato de repressão da ditadura militar, afirmou que Zarattini, morto em 2017, foi responsável por um atentado a bomba no aeroporto do Recife, em 1966, que ocasionou 2 mortos e 14 feridos, crime até hoje sem responsabilização oficial. Ao recorrer à Justiça, a defesa de Ricardo Zarattini disse que Wandenkolk fez acusações falsas e a divulgação da entrevista gerou grave dano à sua honra. Segundo a defesa, o jornal reproduziu afirmação falsa contra Zarattini e o apresentou à opinião pública como criminoso. O jornal foi condenado – em primeira instância – ao pagamento de indenização de R$ 700 mil, e obrigado a apagar a entrevista em seus meios digitais. Em seguida, o Tribunal de Justiça de Pernambuco anulou a condenação do jornal e entendeu que o periódico apenas reproduziu as falas de Wandenkolk Wanderley e não fez qualquer acusação a Zarattini, invocando a liberdade de imprensa, prevista na Constituição. Especialistas, na época, disseram que Wanderley, e não o jornal, que devia ter sido processado por calúnia.

Precedente perigoso

Entretanto, esse precedente gerou enorme insegurança jurídica nos meios de comunicação profissional – digo profissional pois os canais digitais de negacionistas e extremistas políticos publicam mentiras e difamações todos os dias e escapam da lei num vácuo da legislação no meio digital.  Temendo futuros processos, jornalistas mostraram-se mais cautelosos principalmente em entrevistas ao vivo de políticos em meios eletrônicos. Por outro lado, esse processo colocou uma discussão pertinente a respeito da omissão e até conivência de veículos de comunicação em propagar declarações caluniosas de fatos obscuros ou conhecidamente mentirosos, para alimentar alguma narrativa de interesse ideológico da própria mídia em questão.

Em debates políticos ao vivo é comum um tiroteio de mentiras e difamação. E não existe nenhum mediador jornalístico atento ao que está sendo falado e interrompendo a declaração com um fato que a desminta. Nos veículos impressos, é comum políticos reforçarem declarações mentirosas, que são publicadas quase sem contestação, com algumas poucas exceções.

Flagrante

Um bom exemplo para enriquecer esse debate necessário: segundo a agência de checagem Aos Fatos, o ex-presidente Jair Bolsonaro mentiu em público e ao vivo – declarações falsas ou distorcidas – 5.145, em 1.185 dias como líder máximo da nação. Em uma entrevista ao vivo no Jornal Nacional da Rede Globo, em 2022, com duração de 40 minutos, Bolsonaro contou uma mentira a cada três minutos, segundo apurou na época o Estadão. Mentiras em torno da vacina, da epidemia do Covid e de fraude eleitoral, entre outras.

Agora, na eminência de ser processado por ataques à democracia, o ex-presidente repete, quase todos os dias que está sendo processado por uma reunião com embaixadores, onde denunciou as fraudes na eleição que perdeu, sem provas, e que não teve consequências, segundo ele, enquanto o atual presidente Luiz Inácio Lula da Silva, ainda segundo Bolsonaro, teria se reunido durante a campana eleitoral com traficantes do morro do Complexo do Alemão no Rio de Janeiro. para pedir apoio eleitoral. Essa mentira já foi desmentida diversas vezes por inúmeros veículos de comunicação, os quais, continuam reproduzindo essa fala quase diariamente. Sem que ninguém – veículo ou o ex-presidente – seja processado por isso.

Novo entendimento

Voltando ao novo entendimento do STF, em novembro de 2023, o STF admitiu a responsabilização das empresas jornalísticas nos casos em que ficar configurada a má-fé na divulgação de declarações falsas de um entrevistado.  Após a decisão, entidades de defesa da liberdade de imprensa pediram ao Supremo ajustes no entendimento para evitar brechas para a censura por meio de decisões judiciais.

A Abraji (Associação Brasileira de Jornalismo Investigativo), autora de um dos embargos de declaração que suscitou a definição da nova tese, enviou sugestões ao Supremo para aperfeiçoar a redação. A associação alegava que o texto era subjetivo e abriria espaço para ser aplicado de maneira equivocada e inconstitucional, violando a liberdade de imprensa.

Na decisão proferida neste dia 20, segundo a Agência Brasil, os ministros ajustaram a tese de julgamento para excluir a possibilidade de responsabilização no caso de declarações falsas de entrevistados durante entrevistas ao vivo. Os ministros também decidiram que empresas jornalísticas devem retirar das plataformas digitais entrevistas com declarações falsas. A medida deverá ser cumprida mediante remoção por conta própria (de ofício) ou notificação da vítima e vale para a reprodução de reportagens com acusações falsas replicadas nas redes sociais. Ou seja, se ninguém reclamar oficialmente das mentiras, elas poderão continuar nos meios eletrônicos.

Durante o julgamento, o presidente do Supremo, ministro Luís Roberto Barroso, ressaltou que as empresas jornalísticas só vão responder por danos morais em caso de má-fé ou negligência na apuração de veracidade dos fatos.  “O veículo só é responsabilizado por entrevista dada por terceiro em caso de dolo e culpa grave. Em regra geral, o veículo não é responsabilizado por entrevista dada por terceiro”, afirmou.

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