Glória Maria tem uma história incomum e improvável. Nascida e Vila Izabel, Zona Norte do Rio de Janeiro, filha de um alfaiate e uma dona de casa, sonhou em ser jornalista desde criança. Era destaque nas redações nas escolas públicas que frequentou. E se preparou como pode. Estudou ingles, francês e latim, além das disciplinas normais. Cursou jornalismo na PUC do Rio de Janeiro e pagou o curso com um emprego de telefonista na Embratel.
A sorte conspirou a favor dela somando-se a seu inegável talento e determinação. Uma amiga levou-a a trabalhar na TV Globo. Começou na rádioescuta, em 1971, e não saiu mais da emissora até falecer — fez apenas um período sabático de dois anos, quando viajou à África e Índia, para trabalhos voluntários e voltou com duas meninas adotadas.
Além do fato de ser uma jovem negra, com as dificuldades naturais dessa condição no mundo do trabalho, abrindo portas para outras mulheres negras e talentosas que seguiram seus passos no jornalismo, Gloria Maria colecionava atividades pioneiras. Foi, evidentemente, a primeira jornalista negra de destaque na TV; a primeira mulher a entrar ao vivo e em cores no Jornal Nacional. Assim foi também a primeira repórter aparecer em frente das câmeras em noticiários na TV. Em 2007 participou da primeira transmissão em HD na TV brasileira. Foi ainda a primeira brasileira a usar a lei contra o racismo (lei Afonso Arinos, promulgada em 1951 contra a discriminação racial). Ela foi barrada em um hotel por ser negra e com isso acionou a justiça contra o hotel.
Atuou no Bom Dia Rio, RJTV, Jornal Hoje e de 1988 a 2007 esteve no Fantástico. E desde 2010 no Globo Repórter.
Fez reportagens memoráveis em mais de 100 países. Entrevistou mutas celebridades, como Michael Jackson e Madona. Cobriu a guerra das Malvinas (1982). a invasão da embaixada brasileira do Peru por um grupo terrorista, em 1996; os Jogos Olímpicos de Atlanta, também em 1996; e a Copa do Mundo de 1998, na França.
Não tinha medo de nada. Pulava de bungee jump, voava de asa delta, tudo para cobrir ao vivo a sensação das pessoas em esportes radicais. Sempre sorrindo. Não temia gente poderosa também. Em 1979 entrevistou o presidente João Batista Figueiredo, na fase final da ditadura, onde ouviu sua famosa frase do “prendo e arrebento”, referindo-se a quem impedisse a abertura. Mas um problema técnico na câmara fez com que a jornalista perdesse essa gravação importante. Procurou o presidente para que ele repetisse a frase e ele negou de forma agressiva. Ela mesmo contou depois a resposta: “Problema seu, eu não vou repetir”, disse Figueiredo. O ex-presidente dizia para a segurança: “Não deixa aquela neguinha chegar perto de mim”.
No programa Roda Viva da TV Cultura, em março de 2022, ela relembrou o episódio com o ex-presidente: “Eu tive uma experiência horrível com o Figueiredo, mas eu não tinha uma preocupação de que pudesse me prender. Eu tinha talvez uma ingenuidade, sempre carreguei essa visão de que tudo podia dentro do trabalho que eu fazia. Por isso eu ia em frente”.
Foi diagnosticada com câncer no pulmão em 2019. Estava afastada da Globo há três anos para cuidar da saúde. Com altos e baixos no tratamento, que se complicou e desembocou numa metástase do câncer do cérebro, causa de seu falecimento, aos 73 anos. Desculpe Glória, por revelar sua idade. Sei que muita gente perguntou isso em diversas entrevistas com você, e você, com o riso e bom humor de sempre, dizia que não iria falar.
Boas lembranças
Diversos colegas e colegas jornalistas lembraram da figura cativante de Gloria Maria, durante todo o dia que o noticiário repercutiu seu falecimento. Sandra Annemberg, companheira de Glória Maria na apresentação do Fantástico, muito emocionada, lembrou o pioneirismo da colega: “Glória foi essa pioneira. Foi essa mulher que foi na frente. Na frente de todos nós. A primeira mulher negra a conquistar esse mundo”. Para Sandra, Glória foi também uma vencedora, lembrando sua infância pobre e o esforço pessoal para se formar em jornalismo e atuar na profissão. “Ela tinha uma história de vida, além das histórias que narrava”, complementa a jornalista da Globo e Globonews.
Flávia Oliveira, também da Globo, lembra que Glória Maria “foi corajosa ao ousar ser um corpo negro feminino no jornalismo da TV”. Ela se refere ainda a Glória Maria em reportagens ao vivo em bungee jump e montanha-russa, “talvez essa aparente banalidade tenha sido a coisa mais revolucionária que fez, uma referência para todos nós”.
Maju Coutinho, atual apresentadora do Fantástico, e como Glória, também sofreu preconceitos explícitos do público racista por sua condição de mulher negra, disse em entrevista a CBN estar chocada com a notícia: ” A presença dela foi fundamental para mim e também para outras colegas negras. A partir desse corpo ocupando aquele espaço na televisão, isso abre uma porta que as pessoas não imaginam o quanto é importante e o quanto isso dá uma autorização para o seu sonho se tornar realidade”.
Outros famosos lamentaram a morte da jornalista. “A notícia da morte de Gloria Maria foi um golpe grande para mim, sou jornalista por causa dela, uma grande referência”, escreveu a influencer Tia Má. A atriz Cacau Protásio disse que “hoje se foi a mulher mais linda, preta, vaidosa, inteligente, elegante, referência para muitas de nós. É assim que eu sempre vou me lembrar de você. Um dia conto aqui um pequeno bate-papo meu com ela, foi enriquecedor”.
O primeiro jornalista negro a apresentar o Jornal Nacional, Heraldo Pereira, chorou ao vivo hoje, durante o Bom Dia Brasil, ao noticiar a morte da colega.
O presidente Lula escreveu em seu Twitter que Glória Maria foi “uma das maiores jornalistas da história da nossa televisão”.