Mulheres em pauta

“Você acha que me engana com essa história de repórter? Mulher viajando sozinha eu sei o que é”

No início da década de 1960, a jornalista Ana Arruda Callado trabalhava no Jornal do Brasil e cobria as notícias políticas em Belém, quando recebeu do então prefeito da capital paraense a seguinte abordagem: “Você acha que me engana com essa história de repórter? Mulher viajando sozinha eu sei o que é”.

Anos mais tarde, em 1966, ela se tornaria a primeira mulher chefe de reportagem em um jornal, o Diário Carioca, no Brasil. Mais de 50 anos depois, mais jornalistas conquistaram cargos de chefia, mas o preconceito de sempre se manteve intacto. Cleide Silva, que há 20 anos cobre o setor automotivo pelo Estado de S. Paulo, relata uma situação não muito diferente da qual passou Ana Arruda. “Um executivo se irritou em uma entrevista, por telefone, e soltou algo como ‘a melhor posição de uma mulher é esticada na cama”, lembra. “Tive de entrevistá-lo outras vezes, e o fiz sem problemas – ignorar os ignorantes é a melhor política”, ressalta a jornalista.

ASSÉDIO EM NÚMEROS
Dados da pesquisa “Mulheres no jornalismo brasileiro”, realizada pela Gênero e Mídia em parceria com a Abraji (Associação Brasileira de Jornalismo Investigativo), revelam que 70% das jornalistas brasileiras já receberam cantadas no ambiente de trabalho ou foram assediadas de alguma forma.

“Os resultados apontam para a presença de atitudes sexistas em redações em todo o país, que vão desde a distribuição de pautas com base em estereótipos de gênero até o assédio sexual perpetrado por colegas e superiores, sem uma resposta adequada das empresas para esses problemas”, aponta o relatório. Além de situações de assédio sexual ou comportamento impróprio, há relatos de abuso psicológico e de poder, o que muitas vezes tira a oportunidade das profissionais de produzir seu conteúdo com a mesma liberdade que os colegas. Mas, ainda assim, há quem veja uma linha de evolução na abertura de espaços para as profissionais da área do jornalismo, mesmo com as claras barreiras do machismo cotidiano.

BOM, MAS NEM TANTO
De fato, as mulheres já são maioria no jornalismo brasileiro, representando 63,7%, de acordo com a pesquisa “Perfil profissional do jornalismo brasileiro”, do Programa de Pós-Graduação em Sociologia Política da Universidade Federal de Santa Catarina. Porém, continuam ganhando menos do que os colegas do sexo masculino.

Em 2017, o portal Comunique-se perguntou “Quanto ganha um jornalista brasileiro?” e, após entrevistar cerca de 236 profissionais, a pesquisa expôs que mesmo com participação mais baixa em cursos de pós-graduação, homens têm média salarial R$ 1 mil mais alta que a das mulheres. Responsável por cobrir as editorias de Petróleo e Gás, entre outras, no Valor Econômico, a jornalista Cláudia Schüffner conta que a presença feminina sempre foi constante em sua trajetória de trabalho.

“Tive várias editoras mulheres em todos os jornais onde trabalhei – a minha chefe imediata, Heloisa Magalhães, comanda a sucursal do Rio e a diretora de redação do Valor é uma mulher: Vera Brandimarte”, conta. Mônica Scaramuzzo, de O Estado de S. Paulo, ressalta o maior número de mulheres na editoria. “Percebo que as mulheres já dominam as redações – são poucas as que estão na ponta da pirâmide, mas muitas já estão em cargos que antes eram predominantemente masculinos”, observa. Sobre as posições de chefia e diretoria, comenta que no Estadão não há preconceito em relação a isso. “As mulheres aqui têm voz igual e são ouvidas”, afirma. Apesar de observar com otimismo a situação feminina na área, a profissional comenta que já teve problemas em entrevistar fontes que deixaram claro que preferiam se reportar “a um jornalista mais experiente”.

Uma das áreas com maior presença masculina entre jornalistas é o agronegócio, mas Alessandra Mello conseguiu conquistar seu lugar no meio e acredita que muitas outras podem seguir pelo mesmo caminho. “Recentemente fui a um evento social para o qual foram convidados apenas cinco jornalistas considerados referência no agronegócio – três eram mulheres e dois homens”, lembra. Para ela, esse panorama está mais relacionado à nova geração que cobre a editoria. “Entre os mais experientes, especialmente os da mídia impressa, são mais homens do que mulheres”, afirma a diretora de conteúdo do Canal Rural.

Getty Images

Cerca de 70% das jornalistas brasileiras já foram assediadas de alguma forma no trabalho

DISCRIMINAÇÃO
Leda Cavalcanti é um dos exemplos de chefia feminina — atua como editora- chefe da Eletrolar News – e aponta que entre os blogs sobre eletrodomésticos há predominância de mulheres escrevendo, o que pode ser um sinal de segregação temática, como acontece com o futebol e setores como automotivo. Mas alerta: “Muitas vezes, uma discussão profissional sobre uma matéria pode suscitar a ideia de que o tratamento brusco se deve ao fato de a profissional ser mulher – não acho, sinceramente, que é o caso”.

Apesar disso, a pesquisa realizada pela Gênero e Mídia com a Abraji aponta que 86,4% das jornalistas afirmaram já ter passado por, pelo menos, uma situação de discriminação de gênero no trabalho, sendo a distribuição de tarefas a mais comum (57,7%), seguida pela promoção de cargo (39,4%), oportunidade de trabalho (36,9%) e obtenção de aumento salarial (35,4%).

O estudo também revela que “o gênero e os estereótipos de gênero colaboram para produzir desigualdades nos arranjos institucionais no interior das organizações jornalísticas, influenciando as relações, as redes profissionais, determinando formas de divisão do trabalho e influenciando processos de ascensão profissional e econômica de forma prejudicial às mulheres e favorável aos homens”.

DONAS DA HISTÓRIA
Fatores como os demonstrados por essa e demais pesquisas realizadas no país impulsionam a criação de movimentos e veículos independentes que dão o espaço devido para a mulher e que divulgam as situações de preconceito e assédio que acontecem diariamente nas redações e demais ambientes da comunicação.

É o caso da revista digital AzMina, publicação de jornalismo investigativo, sem fins lucrativos, que busca reportar as histórias de mulheres em todo o Brasil, combatendo a violência e empoderando o público feminino que busca representatividade e um olhar diferenciado da realidade. Da mesma forma atua a ONG feminista Think Olga, responsável por criar a campanha de sucesso #ChegaDeFiuFiu e #PrimeiroAssédio. Após a demissão da repórter Giulia Pereira, do IG, que foi assediada pelo então cantor Biel e denunciou o ato, foi criado o coletivo Jornalistas Contra o Assédio, que hoje conta com mais de 20 mil seguidores no Facebook e faz campanhas contra outras situações na profissão.

Durante um congresso da Abraji, em 2016, foi reproduzido um vídeo da campanha, com um comunicado definindo a importância do engajamento de todos na luta contra os abusos. “O assédio é um dos ranços do machismo nosso de cada dia”, diz o comunicado. “Expurgar isso com denúncia e com informação é tarefa não só das mulheres, mas de qualquer jornalista que pretenda, de fato, ver uma sociedade menos desigual de oportunidades, conceitos, direitos e deveres.

“No ano passado, o coletivo lançou também a campanha #JuntosContraOMachismo, que envolveu jornalistas homens lendo frases típicas de assédio e desrespeito às colegas e debatendo sobre a importância de trabalhar contra essa postura e punir os (anti)profissionais que se comportam dessa maneira dentro e fora do ambiente das redações. Observando a mudança na sociedade e acompanhando seu público na quebra de padrões e paradigmas, revistas de diferentes temáticas passaram a abordar questões feministas, como é o caso da Revista CULT, que no ano passado deu espaço para a filósofa, educadora, militante feminista e antirracista Sueli Carneiro em sua matéria de capa, e também da GALILEU, que aborda questões de gênero e feminismo em muitas de suas pautas, e até mesmo revistas femininas, como a CLÁUDIA, que recentemente adotou um novo posicionamento e lançou a campanha #EuTenhoDireito.

O portal Automotive Business lançou em agosto de 2017 a pesquisa Presença Feminina na Indústria Automotiva, com o objetivo de mapear a presença feminina nessa área predominantemente masculina. “Será a primeira pesquisa do gênero desenvolvida com foco no setor automotivo. Esse é o momento de identificar e entender a falta de protagonismo feminino na indústria nacional. É a primeira de uma série de iniciativas de Automotive Business com foco na valorização da mulher”, conta Paula Braga, diretora do portal. A apuração de dados aconteceu no ano passado e, em 2018, haverá debates sobre o tema, envolvendo mulheres do setor, e, por fim, a divulgação dos resultados da pesquisa, em março.

DOMÍNIO
Áreas tradicionalmente conhecidas como masculinas no jornalismo também começam a ser tomadas por mulheres. A revista O Carreteiro, com 47 anos de história, há pouco mais de uma década ampliou suas atividades e passou a integrar a revista Transporte Mundial e o programa Pé na Estrada (Band). O editor da publicação, João Geraldo, ressalta que a plataforma é formada por profissionais de ambos os sexos e, apesar do tema, não há predominância masculina. “Temos a repórter Daniela Giopato que é especialista e escreve há 15 anos sobre transporte rodoviário – igualmente, a jornalista Andrea Ramos dirige e faz testes e avaliações de caminhão, sendo bastante reconhecida em todo o setor”, relata.

No esporte, por exemplo, a estreia de Fernanda Gentil na apresentação do Globo Esporte, em 2014, foi recebida com otimismo. De lá para cá, as jornalistas ganharam mais espaço na cobertura de futebol e outros esportes, incluindo as locutoras e comentáristas de partidas no rádio, como Clairene Giacobe, da Rádio Estação Web, em Porto Alegre, e Núbia Alves, da Rádio Universitária, de Goiânia. Antero Greco, que está na área desde 1970, afirma que já viu de perto o desdém dos colegas para as jornalistas, além de presenciar situações de assédio e maus-tratos por torcedores e até jogadores. Para o comentarista, a editoria ainda mantém “tendência antiga” de atrair mais homens, pois, em sua origem, “tratava-se muito de futebol, mundo vetado para as moças – aliás, o jornalismo era profissão ‘machista’”, conta. Seu colega de profissão, Paulo Vinícius Coelho, aponta que com a entrada de mulheres no campo da opinião, a tendência é que o mercado comece a ter mais um cenário para se balizar.

“Qual a técnica brasileira, mulher, da seleção de vôlei? É uma participação restrita das mulheres, como um todo, do qual o futebol é parte — com o agravante de que é um meio predominantemente masculino”, ressalta, ampliando a discussão para a falta de representatividade feminina inclusive nas categorias esportivas do gênero. Alessandra Mello, do Canal Rural, vê com otimismo os próximos anos no jornalismo para as mulheres, principalmente aquelas que estão em áreas menos “povoadas” pelas profissionais. “O que é mais novo é a presença da mulher também em cargos de diretoria, estes ainda com predominância masculina – o que mostra que ainda há espaço para avançar”, afirma.

Conteúdo RelacionadoArtigos

Próximo Artigo

Portal da Comunicação

FAÇA LOGIN ABAIXO

Recupere sua Senha

Por favor, insira seu usuário ou email