Hoje, com certeza, você já viu pelo menos uma manchete falsa. Seja na timeline do Facebook, por alguma mensagem compartilhada no Whatsapp ou até mesmo em uma breve pesquisa no Google. Não à toa, “pós-verdade” (post-truth) foi eleita a palavra de 2016, segundo o Oxford Dictionaries, departamento da universidade de Oxford responsável pela elaboração de dicionários, que elege uma palavra para a língua inglesa anualmente.
Usado pela primeira vez em 1992, pelo dramaturgo sérvio-americano Steve Tesich, “pós-verdade” tem sido empregado há cerca de uma década, mas um pico de uso da palavra, que cresceu 2.000% em 2016, chama atenção para sua definição: fatos objetivos têm menos influência em moldar a opinião pública do que apelos à emoção e a crenças pessoais.
“Dado que o uso do termo [pós-verdade] não mostrou nenhum sinal de desaceleração, eu não ficaria surpreso se ‘pós-verdade’ se tornasse uma das palavras definidoras dos nossos tempos”
Casper Grathwohl Presidente da Oxford Dictionaries em entrevista ao jornal americano ‘Washington Post’
Se engana quem pensa que a prática, muitas vezes considerada até mesmo uma brincadeira, não é nociva e apresenta consequências. O exemplo mais palpável foi durante as eleições norte-americanas em que o termo ganhou popularidade, assim como nas campanhas do plebiscito do Brexit: ambos foram marcados pela disseminação de notícias falsas nas redes sociais e de mentiras por candidatos ou assessores de campanha.
Reflexo
De acordo com uma análise do BuzzFeed News, nos três últimos meses das eleições americanas, vinte principais notícias falsas publicadas por blogs partidários e sites que fingem ser operações jornalísticas geraram 8,7 milhões de compartilhamentos, reações e comentários. No mesmo período, vinte reportagens de grandes veículos com mais engajamento geraram um total de 7,3 milhões de compartilhamentos, reações e comentários no Facebook.
Sites falsos: 8,7 milhões de compartilhamentos, reações e comentários
Grandes veículos: 7,3 milhões de compartilhamentos, reações e comentários
“A imprensa precisa mostrar causa e consequência de notícias falsas, conscientizar cada um do impacto que isso pode ter na vida de alguém. Em tese, até mesmo uma brincadeira, como a de noticiar a morte de um famoso que está vivo pode impactar de forma trágica a família. Uma mãe, um pai, que lê uma notícia falsa de que um filho morreu pode ter um ataque fulminante”, comenta Rosana Hermann, gerente de Inovação do Portal R7 e colunista do Jornal da Record News sobre Tecnologia e Internet.
Para Guilherme Zocchio Caldeira, jornalista formado pela PUC-SP e colaborador da Folha de S.Paulo, pós-verdade tem a ver, de um lado, com multiplicação dos discursos por causa do surgimento das redes sociais e, consequentemente, com a queda do monopólio dos meios de comunicação. “De outro, está relacionada à fragilização de paradigmas, como a deontologia jornalística e o método científico, que a proliferação discursiva também provocou. Com tantas pessoas falando, perde-se um pouco a referência daquilo que tem qualidade de circular”, comenta.
Preguiça
Luís Arthur Nogueira, editor de Economia da revista ISTOÉ Dinheiro, também aponta as novas mídias como as principais responsáveis pelo crescimento do termo nos último anos. “Em um primeiro momento, isso parecia muito favorável, já que todo mundo poderia ter voz para dar opiniões e, principalmente, para passar informações que seriam úteis à sociedade”. Mas para o jornalista, esse mundo ideal não aconteceu, já que a maioria dos usuários de redes sociais está lá para ouvir o que querem ouvir, reforçando o conceito de “cognição preguiçosa”, criado pelo psicólogo e prêmio Nobel Daniel Kahneman – as pessoas tendem a ignorar fatos, dados e eventos que obriguem o cérebro a um esforço adicional.
“Acho formidável a expressão ‘cognição preguiçosa’ de Kahneman, uma variação da velha ‘lei do mínimo esforço’. Pessoas optam por versões da verdade que lhes são mais convenientes, que oferecem mais alívio, menos dor ou mais ilusão no caso da ‘verdade verdadeira’ ser insuportável”, diz Rosana Hermann. Segundo ela, quando a pessoa está inserida em um grupo social onde todos acreditam em algo diferente do que o jornalismo, a ciência, o mundo dizem, talvez ela opte por essa “verdade alternativa” para continuar sendo aceita pelo grupo.
Vice-presidente Editorial do Grupo RBS, Marcelo Rech, acredita que o jornalismo é a única chance de romper essa barreira psicológica, ao apresentar dados e fatos irrefutáveis, baseados em uma apuração profissional exposta em veículo confiável. “Evidentemente, as grosserias nas redes sociais diante de opiniões divergentes só fazem solidificar essas posições. Aí é que entra o jornalismo, lastreado em técnica e na comprovação de informações”, diz o executivo.
Para ele, mesmo assim, não quer dizer que uma matéria bem apurada e escrita será capaz, sozinha, de mudar visões sectárias. “Mas uma das características do jornalismo profissional não é conquistar amigos. Estamos no ramo da confiança e de expor a verdade buscada por profissionais da informação, mesmo que nos custe dissabores e represálias. Nossa obrigação não é buscar likes para matérias, mas expor o que apuramos e manifestar nossas opiniões sem outras motivações que não sejam as próprias percepções sobre a realidade”, completa.
“Mas uma das características do jornalismo profissional não é conquistar amigos (…) Nossa obrigação não é buscar likes para matérias, mas expor o que apuramos e manifestar nossas opiniões sem outras motivações que não sejam as próprias percepções sobre a realidade”
Retomada
Sidney Leite, historiador e pró-Reitor do Centro Acadêmico Belas Artes, aponta que o jornalista é o historiador do agora. “Ele constrói sua narrativa a partir de dados, de evidência, de fatos”, explica. Para o historiador, esse é um momento auspicioso para o jornalista recuperar um espaço e uma credibilidade que havia perdido, ao mostrar sua relevância social de informar a sociedade baseado em evidência.
Para Nogueira, da ISTOÉ Dinheiro, está ficando cada vez mais claro para a própria sociedade a necessidade de uma fonte de informação confiável. “É humanamente impossível pensar que cada indivíduo vai fazer um trabalho de filtro e checagem de todas as informações que estão disponíveis na internet. O que se espera é que alguém faça isso, que é o papel do jornalista”, completa.
Além dos grandes veículos, que já possuem anos de mercado no ramo das notícias, levando informações com credibilidade ao público, esse novo momento para a profissão também se torna uma oportunidade para que os profissionais desenvolvam ainda mais suas habilidades. “Essa profunda mudança no mercado de jornalismo traz a possibilidade do profissional adquirir novas competências”, diz Marcio Cardial, diretor e publisher da revista Negócios da Comunicação. Para ele, investir, por exemplo, em capacitação para a leitura de dados é essencial para diminuir o mercado de notícias falsas. “Por isso, é importante reconhecer os jornalistas especializados mais relevantes, que são escolhidos por meio de voto de outros jornalistas e profissionais de comunicação”, completa Cardial, que também é responsável pela criação do Prêmio Especialistas.
Jorge Tarquini, jornalista, criador e diretor da Scribas Produção de Conteúdo endossa o valor da qualidade. “Fazer o que realmente sabe fazer. Jornalismo, sem aspas e com “J” maiúsculo, tem de voltar a entregar o que apenas ele pode: a visão mais apurada, mais equilibrada, a análise mais plural. E quem quiser continuar a acreditar no blog do zé das couves que pague o mico. Afinal, vivemos num país livre. E que bom que seja assim”, diz.
Além disso, visando ao combate da desinformação, também é necessário que haja profissionais capazes de identificar e também de corrigir dados equivocados. “O que a imprensa pode fazer é ater-se e fortalecer seus princípios mais elementares. Há experiências com agências de fact checking que são interessantes para filtrar melhor as informações, por exemplo”, diz Zocchio, da Folha de S.Paulo. Bruno Garattoni, editor da revista Superinteressante, também aposta nos projetos de checagem de informações para conter as notícias falsas. “Desse modo, as notícias escandalosamente falsas tendem a perder terreno. Mas o noticiário político distorcido seguramente continuará a existir”, completa.
Welington Andrade, editor da revista Cult, analisa que mais do que entender a função do jornalista, é preciso saber como funciona a nossa sociedade. “Talvez o problema maior esteja ligado às esferas da educação e da cultura. Enquanto o Brasil detiver os altos índices de analfabetismo funcional que ele apresenta atualmente, ou seja, enquanto as pessoas não forem leitoras proficientes dos textos que leem e, por extensão, do mundo à sua volta, a comunicação de massa será sempre uma esfinge sedutora, mas devoradora de consciências”, diz. De acordo com Welington, enquanto a cultura for tratada como uma espécie de meia-irmã do entretenimento e da promoção publicitária, as redes sociais irão sempre se constituir em armadilhas, ou seja, em formas de comunicação que enredam o cidadão despreparado nas teias de grandes ficções apresentadas como verdades.
“Enquanto o Brasil detiver os altos índices de analfabetismo funcional que ele apresenta atualmente, ou seja, enquanto as pessoas não forem leitoras proficientes dos textos que leem e, por extensão, do mundo à sua volta, a comunicação de massa será sempre uma esfinge sedutora, mas devoradora de consciências”
Combatendo na prática
Google
O site de buscas passou a punir portais que disseminam essa prática como parte de uma ação que deve atingir todos que “falsificam, distorcem ou ocultam informações sobre editores, o conteúdo do editor ou o propósito primário da propriedade da web”. Quando identificadas, essas páginas passam a ser proibidas de participar dos programas de anúncios do Google.
Em outra frente, a empresa diz estar revisando as políticas de uso do YouTube para proibir que vídeos com informações deturpadas veiculem anúncios. As punições envolvem o principal ativo da empresa, já que a publicidade rende quase US$ 9 de cada US$ 10 faturados.
Mesmo com essa preocupação, o Google não retira dos resultados das buscas os links que tragam alguma informação suspeita. O que tem sido feita é a inclusão de links de fatos analisados por entidades de “fact checking” sempre que um assunto tratado de forma imprecisa seja listado. Além disso, a empresa investiu em organizações de “fact checking”, como Catchy (Itália), Full Fact e Stat/Faktama (Reino Unido), Ferret Fact Check (Escócia) e Lesserkritikk (Noruega).
Facebook
Em abril, a rede social anunciou uma ferramenta que deve ajudar a reduzir o número de notícias falsas compartilhadas. Como um guia de dicas, o recurso está disponível para 14 países, incluindo o Brasil, em uma aba no topo do feed de notícias.
Ao clicar na ferramenta, o usuário será direcionado para a Central de Ajuda do Facebook com o título “Dicas para detectar notícias falsas”. A página contém uma lista de dez passos para checar uma informação, entre eles como verificar a URL, investigar uma fonte e identificar se o texto não se trata de uma piada.
Além das dicas, a ferramenta também conta com tutorial de como denunciar uma informação falsa. Segundo o Facebook, após um post ser reportado como boato, uma equipe jornalística terceirizada fará o trabalho de verificação dos dados e, caso fique comprovado, uma etiqueta marcará a publicação no feed.