Jornalismo em (re)construção

Em uma postagem na rede social de um colega jornalista, ele revive momentos do passado em um #tbt, sigla em inglês para a hashtag throwback thursday, quando, nas quintas-feiras, as plataformas são preenchidas com fotos antigas. Sentado na redação do Diário de S. Paulo no início do século, o registro mostrava um pouco da rotina do pauteiro que, à época, alimentava com futuras notícias uma equipe de vinte repórteres da editoria de Cidades. Muita coisa mudou.

O próprio Diário de S. Paulo já não é mais o mesmo, desde a foto teve algumas mudanças em seus donos, fechou e, agora, está em vias de voltar à atividade, de maneira discreta. A forma de conduzir as edições também é outra, diante do ritmo frenético da cobertura online. Além disso, ter vinte repórteres dedicados a uma única editoria de um diário não condiz mais com a realidade da profissão.

Em novembro, a plataforma de cobertura política e pesquisas, Poder360, divulgou dados que repercutiram como sinal de alerta para a mídia tradicional: entre os dez jornais diários mais relevantes do país, entre 2014 e 2019, houve uma redução de 51,7% em sua tiragem. O número de exemplares impressos passou de 1,2 milhão para 588 mil. Por outro lado, enquanto todos os caminhos apontam para a convergência digital dos produtos jornalísticos, o mesmo estudo mostra pontos sensíveis da nova fase do consumo de conteúdos.

Segundo a pesquisa, o número de assinantes digitais cresceu, mas leva em conta uma base histórica ainda pequena – que conta poucos anos e jornais que cobram o acesso às notícias, bem como regras muito recentes para contabilizar esses números. Por fim, ponto nevrálgico da operação desses veículos no Brasil: a receita do digital é menor do que na versão impressa, já que para cada assinante impresso perdido é necessário haver diversos digitais para que a conta se iguale.

“Não há surpresa nessa transição, embora ninguém saiba prever seus desdobramentos”, pontua o jornalista e professor Eugênio Bucci, autor de livros e ensaios sobre comunicação e jornalismo.“Estudos capazes de fazer previsões seguras sobre as consequências e os rumos das disrupções em curso não existem, mas, ao mesmo tempo, todos sabíamos que navegaríamos por turbulentas alterações de padrões tecnológicos”, complementa.

A revista Negócios da Comunicação conversou com profissionais que pudessem trazer as experiências diárias de seus veículos nos rumos da sustentabilidade financeira em tempos turbulentos.

Transformações estratégicas

Com 145 anos de história, o ambiente de produção de notícias no prédio de O Estado de S. Paulo se configura de maneira bastante diferente dos seus primórdios, da organização clássica da redação.

Hoje, no mesmo espaço, estão profissionais diversos, mas sob um mesmo objetivo: jornalistas de texto e imagem, analistas de dados, engenheiros, especialistas em SEO e redes sociais, radialistas, programadores, gerentes de produto, designers e profissionais de marketing trabalham no mesmo espaço.

“Tudo para que este jornalismo de excelência seja entregue dentro da jornada do leitor, na plataforma preferida pelo leitor, em permanente diálogo com o leitor”, detalha o diretor comercial executivo, Paulo Pessoa. Só no Portal são 30 milhões de usuários únicos. O apoio dos anunciantes, comenta, se conquista por meio de projetos que efetivamente gerem resultados. “Cada vez mais nos esforçamos em vender soluções efetivas e não inventário de mídia, meramente”, diz.

Isso significa, na visão do executivo, ir além do volume de audiência – mas também trabalhar na sua qualificação. Na área de Marketing, por exemplo, foi criado o time de Insight Sales com o objetivo de desenvolver projetos por meio de insights criativos a partir de estudos sobre os clientes. Na área de dados, o jornal aprofundou a expertise analítica para propor campanhas utilizando essas informações.

“Foram dezenas de projetos desenhados sob medida, sempre a partir de situações de negócios concretas dos nossos clientes e do uso inteligente da nossa audiência”, ressalta.

A área comercial, de acordo com o executivo, passou a atuar em frentes 360º. “Toda a força de vendas passou a propor projetos multiplataforma, agregando valor aos nossos clientes, por meio de campanhas relevantes e mensuráveis”, cita.

O Squad de Oportunidades é um time multidisciplinar formado por designers, gerentes comerciais, analistas de dados, planejadores e estrategistas digitais, dedicado a apresentar e aproveitar as oportunidades do mercado, com viés comercial, gerando soluções para problemas dos clientes.

Sobre a monetização via paywall, Pessoa explica que o desafio é mostrar aos leitores que vale a pena pagar pelo conteúdo relevante, para lê-lo ilimitadamente. “Com esse foco, lançamos um paywall dinâmico, que impacta cada usuário de forma segmentada, de acordo com o comportamento de engajamento de cada um – abordamos um usuário anônimo de forma diferente do que abordamos um heavy user”, explica.

Os usuários foram divididos em clusters, de acordo com o engajamento, e cada cluster pode ler um volume diferente de matérias, até serem impactados com uma oferta de assinatura, além de receberem Comunicação e Preço diferenciado por perfil. “Dessa forma, acreditamos que a conversão em assinatura será cada vez mais efetiva, pois o momento de assinar tem um caminho, desde fazer o cadastro, engajar com o conteúdo e decidir pelo pagamento”, enumera.

Carteira digital

Desde 2012, em um movimento então solitário, a Folha de S.Paulo investe em um sistema de cobrança por conteúdo on-line. A instalação da tecnologia do paywall tem por objetivo a monetização do consumo de conteúdo e, como comentou o diretor-superintendente Antonio Manuel Teixeira Mendes, foi uma forma de substituir a corrente inicial, de acesso gratuito, que se mostrou equivocada. “As fontes de financiamento de um jornal estão em dois caminhos: os anunciantes e os consumidores, sendo esses últimos divididos entre os assinantes do impresso e via paywall”, explica.

Hoje, a Folha é líder na carteira digital e, de acordo com o executivo, mantém média de 40 milhões de usuários únicos, e recentemente, passou a oferecer uma novidade aos assinantes, relacionada ao paywall: o link-presente – quem assina pode liberar até cinco conteúdos publicados por dia aos seus contatos.

Em 2000, a Folha contava, em média, com 440.655 assinantes no formato impresso. Desde então, mais de 350.000 assinaturas foram perdidas no papel – mais do que toda a circulação atual da Folha. Mendes, no entanto, reforça a importância do impresso no dia a dia da empresa. “O jornal, da forma como ele é fechado, contextualiza mais que digital, por exemplo, uma página dupla que fala sobre o Brexit, ali você pode dar todo o cenário”, explica.

Por esse motivo, comenta o diretor, que existe a possibilidade de ler, também, no digital, uma versão igual ao layout impresso. “O desafio é manter o público do jornal e aumentar mais e mais o leitor no digital – lembrando que a notícia impressa ainda tem um DNA muito forte”, salienta.

Para Mendes, a proliferação “sistemática” de narrativas como as fake news é responsável pelo aumento da relevância do jornalismo profissional. “Nesse ambiente de polarização, quem sai mais prejudicada é a verdade”, afirma. Do ponto de vista da inovação e produtos, outras iniciativas da Folha têm apresentado bons resultados. Os podcasts do grupo já ocupam hoje a segunda maior audiência da categoria no país e já despertam interesse do anunciante; a área de branded content do Estúdio Folha apresentou crescimento no ano; por fim, a divisão de eventos também teve alta, com a realização de vinte seminários vinculados à marca em 2019.

Em 31 de outubro, o presidente da República, Jair Bolsonaro, em entrevista à TV Bandeirantes, disse que determinou o cancelamento de todas as assinaturas da Folha de S. Paulo no governo federal. Posteriormente, durante live na rede social, se referiu aos anunciantes da publicação dizendo que eles deveriam “prestar atenção”. Um edital para o processo de licitação que excluía o jornal da relação de veículos exigidos chegou a ser publicado pelo Diário Oficial da União, sendo revogado oito dias depois, em dezembro.

“A Folha vai fazer 100 anos em 2021, os governos passam e o jornalismo profissional permanece; e ter um governo incomodado com a cobertura do grupo é a praxe; a tendência do governo é querer só notícia boa – e não é esse o papel”, comenta. De acordo com Mendes, as assinaturas espontâneas “crescem muito” durante os ataques e não houve nenhum efeito negativo sobre anunciantes – “pelo contrário, (o empresariado) precisa de um lugar com as notícias bem apuradas”.

O que se traduz em números: novembro – logo após as ações do presidente em relação à Folha – foi um dos melhores meses do ano, com 2.640 novas assinaturas. “É uma visão distorcida do papel da imprensa; desde a redemocratização algo assim não acontecia no Brasil – a gente não vai mudar um milímetro da nossa linha editorial”, ressalta.

Liberdade
Para a presidente do Instituto Palavra Aberta, Patricia Blanco, um dos pilares da democracia é a imprensa livre. “O jornalismo deve ser imparcial, vigilante, apresentar todos os lados de uma mesma história de modo limpo, afastando-se de interesses políticos ou econômicos”, ressalta.

E nesse âmbito, lança também um olhar para o ponto de vista humano, do profissional que conduz essas atividades.“Quanto mais sobrecarregado está o profissional, menos tempo, disposição e inspiração ele tem para se aprofundar nas matérias, investigar novas denúncias e pesquisar outras narrativas, uma vez que tem que dar conta do dia a dia”, diz.

A presidente também lembra que, além da crise de estrutura, a atividade jornalística ainda enfrenta a falta de entendimento do papel da imprensa e do jornalismo profissional pela sociedade. “Temos um problema de difícil solução, pois grande parte do eleitorado confia nessa ideia e passa a demonizar a imprensa como um todo – e pedir o fim de veículos de massa é bastante perigoso para a sustentação da democracia”, alerta, complementando que essa tendência não é uma exclusividade do Brasil.

“A democracia sofre ameaças quando o direito à informação do cidadão se contrai em lugar de se expandir”, alerta o jornalista e professor de Comunicação Eugênio Bucci. Na visão do estudioso, se as tecnologias, ao invés de ampliar a informação, estão mais voltadas à desinformação, há um risco.

“Dentro desse raciocínio, precisamos avaliar se as plataformas sociais, hoje dominadas por monopólios globais, não vêm fomentando preconceitos em lugar de conhecimento, ódio em lugar de razão, obscurantismo em lugar de informação”, pontua.

Descentralização

Do ponto de vista da sustentabilidade do negócio, Bucci acredita que o mercado por onde se processam as decisões coletivas precisa ser um protegido contra o monopólio e não deveria reprimir a diversidade, a pluralidade e a concorrência.

“O principal caminho ainda não foi verdadeiramente tentado: é preciso regular, a partir do poder público, o poderio incomensurável que foi concentrado em monopólios (ou duopólio) como Google e Facebook”, aponta, reconhecendo que esse é um esforço que deve ter como arena principal a União Europeia e os Estados Unidos.

Além dessa vertente, o professor também cita a necessidade de se pensar em formas públicas de proteção ao jornalismo de qualidade. “A exploração do sensacionalismo e do bizarro não basta para dar sustentabilidade à imprensa – proteger o jornalismo de qualidade envolve educação, é por isso que a educação midiática vem crescendo e precisa crescer. Proteger o jornalismo significa proteger a formação do público”, diz.

Patricia, do Instituto Palavra Aberta, complementa citando projetos jornalísticos que focam transparência, segmentação de tema e público e também um grande investimento na qualidade, resgatando princípios básicos para uma boa reportagem.

“É interessante observar essa multiplicidade de conteúdos especializados, de nicho, que se dedicam a temas restritos e, com isso, aprofundam assuntos e reforçam a confiança dos leitores”, comenta.

Nos exemplos brasileiros, cita o Jota e o Nexo e no âmbito internacional, cita o The New York Times e o exponencial crescimento de suas assinaturas e acessos no digital. “Acredito que a digitalização da comunicação abre um vasto leque de oportunidades para se produzir informação confiável e útil para a sociedade, dentro e fora do que chamamos de jornalismo tradicional”, observa a estudiosa. “O que não podemos é desistir de buscar formas de melhorar o ambiente informacional, entregando ao consumidor de notícias conteúdo cada vez mais preciso, informativo e isento”, conclui.

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